(In: Aguim Em Mim - Western Ginato)
O sino da torre da capela da Nossa Senhora
do Ó de Aguim bateu três vezes, e o som das horas cobriu em três ondas
sucessivas o casario prolixo, até se desvanecer em silêncio nos pinhais e
olivais derredor. Bateu três vezes e calou-se. Dentro em breve repetirá as três
badaladas, entretanto, tanta coisa se passará, mas o sino ignorará tudo, porque
para ele serão ainda três horas da madrugada.
Um vulto na noite. Um vulto mal distinto na
noite lúgubre que deixava a palidez da lua iluminar a rua da Portela, ou
escurecer, porque ainda não nasceu quem saiba ao certo quando é pouca a luz ou
muita a escuridão, ou vice-versa.
O vulto é de um homem que espera alguma
coisa ou alguém, com ar ameaçador, ou assustado; que a coragem e o medo distinguem-se
tão bem uma do outro como vimos que acontece com a luz e a escuridão.
A pequenos espaços de tempo, vão aparecendo
outros vultos, estes sobressaindo da escuridão como fantasmas, devido ao manto
branco com que se cobrem, que esvoaçaria ao vento, se houvesse vento, mas
naquela noite iluminada, ou escurecida, pela palidez da lua não bulia a menor
aragem para que desse modo a cena de um crime que estava prestes a acontecer
tivesse a maior carga dramática possível.
Um a um, os embuçados vão saindo dos becos
e ruelas adjacentes, empunhando varapaus e cercando o vulto no meio da rua da
Portela. Só depois aparece uma figura formidável, de rosto descoberto, apenas
envergando um barino e com uma enorme moca na mão, de onde nascia um verdadeiro
espinheiro de pregos. Era o temível e tão admirado como odiado Lica.
Esta é a história fantástica e lendária do
rei dos embuçados de Aguim. Passou de ancião para jovem e depois esperou que o
jovem se tornasse ancião e passou para outro jovem, de geração em geração até
chegar a minha vez de a contar aos jovens de hoje.
E embora não bulisse a menor aragem, quem
conta esta história jura que a aba do seu varino ondulava ao vento.
De tudo quanto se sabe sobre ele, poucos
são os que acreditam em metade do que se conta, como sempre acontece com as
figuras que superam os seus pares. A imaginação dos espíritos mais criativos
fantasia o que não se sabe de fonte segura e a inveja dos medíocres e dos
covardes tenta diminuir a importância dos feitos que temem ser verdadeiros porque
os menorizam a eles.
Diz-se que, quando uma junta de bois não
conseguiu tirar de um atoleiro o carro que puxava, o Lica desatascou o carro;
empurrando o carro, a carrada e os bois. Diz-se que um dia fez uma aposta com
um lavrador abastado, prometendo que levaria às costas para sua casa uma pipa
cheia de vinho se o lavrador lha oferecesse, e o lavrador incrédulo aceitou o
desafio e perdeu assim uma pipa do seu melhor vinho.
Dizem-se do Lica mil e uma coisas em que
não acreditamos, porque a maior parte de nós são pessoas medíocres que usam a
incredulidade para esconder a sua mediocridade, a sua cobardia, a sua falta de
aceitação das coisas, pessoas e fenómenos que transcendem a insignificância das
suas vidas desinteressantes.
Era essa figura temível e fantástica que
saiu da rua do Chães de S. Miguel e caminhou a passadas calmas mas seguras até
ao meio da rua da Portela e que depois se virou para olhar de frente o vulto
que há pouco poderia parecer assustador mas que repentinamente se tornou na
silhueta insignificante de um homenzinho assustado.
O Lica era um homem olhando outro homem,
mas o Lica era maior do que o homem que era, porque, na verdade todos os homens
têm um valor diferente daquilo que são e que aparentam, todos os homens ganham
valor, ou perdem, pela história que vão construindo de si e que os acompanha
pela vida fora, e até para além da vida, como se vê por este relato.
De um lado, um vulto de homem mediano, que
a palidez da lua não deixava reconhecer, que tremia de medo, rodeado por quatro
embuçados que lhe impediriam a fuga. Do outro lado o colosso de moca ornada de
pregos, de cujo rosto se via apenas o branco dos olhos, mas que qualquer
habitante de Aguim reconheceria como sendo o lendário Lica.
A coragem do homem acossado, afinal, seria
digna da maior admiração, não fora o peso no bolso que lhe fazia descair um
pouco o casaco para a direita, o peso do revólver de cão recuado que sobre a
coxa lhe dava a garantia de aqui, hoje, nesta noite lúgubre, lhe saldar a
dívida pela humilhação de que fora vítima ao ter-lhe sido furtada a pureza da
mulher prometida, decerto à força, por aquele brutamontes que agora enfrentava.
Os quatro embuçados que o rodeavam,
imobilizados pela consternação de um massacre já inevitável, encostavam-se às
paredes das casas que ladeavam a cena, com remorsos antecipados por
participarem no confronto desigual entre aquele algoz e tão débil criatura.
O Lica deu o primeiro passo devagar, deu o
segundo passo mais rapidamente e prestes a lançar-se sobre a sua presa, ergueu
a moca cheia de pregos.
O sino da torre da capela da Nossa Senhora
do Ó de Aguim, que dá as horas sempre em duplicado, bateu de novo três vezes,
fazendo vibrar o seu bronze vigoroso e lançando por três vezes de novo as ondas
sonoras sobre o casario prolixo da velha vila, até que o som e o eco do som se
venha a perder, agora definitivamente nos pinhais e olivais derredor.
Que não se estranhe que tanta coisa se
tenha passado entre as duas vezes que o sino deu as três horas, como se
quisesse apagar tudo o que se passou entrementes, tal qual acontece tanta vez
com a indiferença dos homens a respeito das coisas que não entendem ou não são
capazes de valorizar. Não se estranhe, porque, contrariamente, a nossa memória
das coisas tende a dilatar os acontecimentos dramáticos que vivemos, e a
memória de muitas pessoas, como as que transmitiram estes acontecimentos no
decurso de mais de um século, tende a dilatá-los proporcionalmente.
Na verdade, tudo o que aconteceu, aconteceu
entre as duas vezes que o sino deu as horas, e é de estranhar que tanta coisa
se saiba.
Aquele vulto, depois de consumar a sua
vingança, há de fugir para o Brasil, mas antes esconder-se-á das autoridades
num tonel vazio de postigo trancado, aonde a sua irmã fará chegar pelo batoque
a comida e a bebida para ele sobreviver durante um mês. O que ele fez ao que o
corpo não aproveitou e sempre tem de expelir, não sabemos; são pormenores que
agora também não deixaremos que venham estragar a nossa história.
O sino deu a terceira badalada, o Lica já
se lança sobre a vítima desgraçada, a última onda sonora ainda não se perdeu
pelos pinhais e olivais derredor e já outro som desassossega o ar desta noite
lúgubre, em ondas mais rápidas, por se tratar do inconfundível estampido de um
tiro que atravessou o coração de touro do embuçado mais temível de sempre. Mas
isso não o fez parar. O Lica morreu correndo atrás do seu miserável matador por
mais de dez ou vinte metros, conforme a credulidade de cada narrador.
Esta história acabou, já há muito que não
vive ninguém que tenha conhecido os seus personagens, já são muito poucos os
que ouviram falar dela. De ancião para jovem, de geração em geração esta
história chegou até aqui, e entretanto, este povo, a quem alguém atribuiu
brandos costumes, viu assassinar um rei, o seu sucessor, um presidente, um
primeiro-ministro e o seu ministro da defesa, além disso, manteve uma guerra em
três frentes do outro lado do mundo durante mais de uma década e por fim, não
contente com estas reviravoltas que deu à História, fez uma revolução para começar
tudo de novo. Agora luta arduamente para sair de uma crise económica e
civilizacional em que nos colocaram os medíocres e covardes. Porém, este povo
pode não descender de homens como o Lica, mas descende seguramente de homens
capazes de dar reviravoltas à História.
Cuidado ó medíocres e
covardes!
Sem comentários:
Enviar um comentário