26.1.16

Ida à praia

Ainda de noite, e um alvoroço na casa toda, como se os objetos a acordarem nervosos. Eu a reconhecer o dia especial, com o sono a pesar-me na cabeça e a ansiedade a inquietar-me o peito. A buzina da camioneta de carreira a pôr os meus pais atarantados. De cinco em cinco minutos para não deixar descuidar os mais calaceiros.
A minha mãe atarefada e sem mãos a medir – Ó Zé, no estrobes q’eu no agarro o cu às mãos ambas.
O meu pai tropeçando nas coisas como se os membros todos lhe estorvassem – Entropiquei aqui no tapete – e depois preocupado com o tempo – Vai estar rõe este ano.
E eu agora já mais desperto, mas o rosto ainda empoeirado de sono. – Ó mãe, tenho fome.
Lá fora a camioneta ainda à espera, buzina, e de cada vez que buzina a Costa Nova mais perto.
O largo do Sobreirinho ainda com a calma do sono só sobressaltada pela corrida dos retardatários, a camioneta impaciente chamando, os meus pais parecendo ter ainda um dia de trabalho pela frente e eu num incómodo bipolar, eufórico e ensonado. E a Costa Nova, afinal, ainda tão longe.
Finalmente, acomodados na camioneta, afogueados da canseira. A minha mãe a tentar uma desculpa – Nestes dias é sempre munta tagarela.
O meu pai num sobressalto – Destes a lavagem à porca?
– Estroceguei-le umas covitas. Co as patarrabas e um punhado de farinha já ficou bem assalgalhada.
Por fim a camioneta a arrancar num estertor de tísica, mas logo um alvoroço nos passageiros ao verem um último calaceiro correndo atabalhoado e largando as coisas pelo caminho.
O alvoroço acalma com o embalo da carreira e o pigarro do motor. Os passageiros a tentarem acabar o sono interrompido e eu ainda ansioso, antecipando na minha imaginação a chegada à praia nas várias versões possíveis.
O meu pai ainda desassossegado – Estou c’uma fraqueirazita.
A minha mãe com um sorriso de vitória – Toma Zé, q’eu é que tenho d’olhar por ti.
Depois o meu pai mastigando de boca seca com receio de se queixar e a minha mãe castigadora por baixo de um sorriso maternal – É isto que tu queres? Estás aí a engrolar o pão proque nem te lembrastes da pinga.
Agora sim, o silêncio e a serenidade tomam conta de todos, embora eu ainda dividido entre a preguiça e a excitação.
O melhor da viagem é a paisagem com alguns traços de outono num setembro já cansado de verão. E o meu pai agoirento – Vai estar rõe este ano.
A paisagem num desfile de imagens corrige todos os anos o álbum da minha memória. Eu a lutar com o peso na cabeça e a poeira do sono e, agora ainda, o ranço pesado das pessoas. Quando eu já prestes a sucumbir, o hálito fresco do mar a despertar-me, ainda tão levezinho, que se calhar só ilusão.
Mas de repente o bom cheiro fecal da ria, o bom aroma pútrido do moliço, o bom perfume cáustico das pirâmides de sal. E a luz que cega.
A camioneta para antes da ponte de madeira. Toda a gente a pé e depois, do outro lado, a ver a camioneta avançando a apalpar terreno com medo de a ponte cair. Agora chegando junto a nós com alívio, entre palmas e risos.
Ao longe sobre um lençol de seda azul o eterno priapismo do farol da barra.
O mundo a mudar aqui. Para trás, as coisas da vida conhecida, com densidade, familiares para os sentidos e o entendimento; para a frente, as coisas de um outro mundo que só vejo durante quinze dias por ano, feito de coisas mais limpas, sublimadas e leves, que a mente não perde tempo a tentar entender porque os sentidos as abocanham sôfregos.
Tudo cândido e sereno, salvo a inquietude do mar.
A calma das águas, a inquietude das águas; a paradoxal vida das águas a deslumbrar os tolos, os poetas e as crianças, que as pessoas com tino e responsabilidades têm mais em que pensar.
Os operários nos estaleiros numa azáfama de formigas em volta do esqueleto de um barco. Os marnotos correndo de cuecas, correndo sempre, entre a salina e o monte de sal. Os moliceiros como gôndolas gigantes a mirarem-se no espelho da ria. E a praia agora já perto.
A Barra de Aveiro passa num instante, preciso de olhar com atenção. O farol fálico a passar por nós. De noite, risca a escuridão com um longo dedo de luz a esquadrinhar o negrume em busca dos barcos que se aproximem de mais dos seus quebra-mares e nos dias de nevoeiro ronca até nos enlouquecer. A passarem por nós também as pessoas, que parecem não ter propósito nenhum senão estar ali. Nem nos olham.
Férias é não ter propósito nenhum; nós agora ainda temos um propósito, quando chegarmos ao nosso destino ficaremos também só ali. 
Em breve a areia fina da praia. A areia como moeda de troca do sal. Dizem. Os navios nórdicos em busca do sal traziam-na como lastro e despejavam-na aqui. O sal, o lastro de areia e muitos séculos fizeram a praia da Costa Nova só para nós passarmos lá quinze dias.
Finalmente o mar. Uma luz tão limpa e um ar tão leve, que as pessoas a acordarem uma a uma. As cores das barracas a decorarem a praia. Listas feitas de barracas. Barracas feitas de listas. Casas feitas com as listas das barracas. Tudo tão arrumado. Tudo tão limpo.
O som do mar ininterrupto. O enorme lençol das águas a desdobrar-se até à praia em orgasmos de espuma.
A alma a levitar.
A camioneta parou e tudo parou dentro dela, como se as pessoas pasmadas com o bulício do lado de fora. Fora da camioneta o mundo diferente, dentro da camioneta ainda o mesmo mundo que veio connosco desde o largo do Sobreirinho.
Abriram as portas e os dois mundos a misturarem-se. E nós deixámos logo de ser os mesmos. A nossa alma a misturar-se com a alma da Costa Nova.
Um moliceiro transformado numa gôndola de transporte público com o barqueiro a empurrar com uma vara o fundo da ria para trás. E o barco parecia avançar para a frente, com ele a correr de cuecas também, na amurada do barco, correndo sempre, a pé descalço, da proa para a popa de vara fincada no fundo da ria e depois da popa para a proa de vara no ar. E de novo a empurrar o fundo da ria para trás, ajudando a vela cansada de tanto se tentar agarrar ao sopro frouxo da brisa.
À espera, no atracadouro de telhado em forma de boné, outra leva de passageiros para as gafanhas.
Ao descer da carreira, as pernas bambas de preguiça, os olhos ainda emboitados de sono. Era isto que eu mais queria. Chegar ao destino e ficar aqui. Não ter propósito nenhum senão sair da camioneta de carreira e ver a Costa Nova à minha espera. Tudo a cintilar de luz e a borbulhar de vida.
E nós pasmados, numa alegria de tontos perante o belo.


Para deficientes visuais ouça a versão áudio em ADFA.Portugal.com na rubrica Episódios aqui

1 comentário:

Anónimo disse...

Memorias como essa continuam a enriquecer a vida presente....
Para mim era um mês lá passado à custa do meu pai um guinato a servir santolas e lagostas na marisqueira e que alegria quando escapava de lá alguma coisita.
António Augusto