28.1.16

Uma história mal contada


Eu a olhar para dentro do cacifo e a pensar “que diabo vim eu aqui fazer?”
Acabei por desistir, e dirigia-me já para a cama quando me lembrei de ter visto a tua foto descolada. Voltei para trás e tornei a abrir o cacifo.
Parece impossível, mas a tua foto descolou-se de novo. Todas as outras fotos se mantêm no lugar, a tua é a única que teima em descolar-se. Parece bruxedo.
Devo ter estado imenso tempo a olhar para dentro do cacifo, porque o furriel Bastos passou por mim com um carregador de G3 na mão, e disse:
– Parece que tens alguma coisa contra esse cacifo.
Se não fosse cá por coisas mandava-o à merda. Gosta de se armar em esperto.
Agora vim sentar-me na cama. Da cama eu vejo uma nesga da parada e ao longe o refeitório. E depois, árvores e mais árvores. Nada nem ninguém me impediria de me levantar e ir em linha reta até àquelas árvores e depois, não parar, seguir sempre em frente até desaparecer. Levariam muito tempo para darem pela minha falta, o tempo suficiente para eu me pôr ao fresco. Mas claro que não farei isso; não por patriotismo ou falta de coragem, mas pela mesma razão que nenhum dos meus camaradas o fará. É que não há nada para além do refeitório, durante centenas e centenas de quilómetros. A não ser árvores, claro.
Estamos presos neste lugar danado, numa prisão sem muros, sem nada que nos impeça de fugir. A não ser a distância. Estamos a uma distância louca de qualquer sítio para onde possamos fugir.
O furriel vem aí de novo, agora com a coronha da G3. Vem longe e já vem a arreganhar-se. Vai dizer mais uma piada, pela certa.
– Deixa lá, não fiques assim, ainda vais encontrar um cacifo que te entenda.
Às vezes penso que o senso de humor pode ser um disfarce para a estupidez. Que anda ele a fazer, levando uma peça da G3 de cada vez?
Reparo agora que estou sozinho na caserna, e a nesga da parada não tem ninguém. Parece que neste fim-de-mundo só estou eu e o furriel. Eu a magicar naquela coisa estranha de a tua foto se descolar a toda a hora, e o furriel que parece andar a roubar uma G3 peça a peça.
É tudo tão estranho quando a nossa vida é vivida fora do seu lugar. É como tentar usar um carregador de uma Kalash numa G3.
Dou por mim a pensar: não sou daqui, estou aqui a mais, e parece que ninguém se sente feliz por eu aqui estar; e no entanto, se eu tentar fugir podem até matar-me.
Não sou muito inteligente, não sei muitas coisas, é verdade, mas entendo que isto não faz sentido, e por isso não pode acabar bem. E as muitas pessoas que sabem mais do que eu já entenderam tudo há muito tempo, e é isso que mais me chateia. Nós aqui a aguentar esta guerra como se ela fosse para durar sempre, e as guerras são para ganhar ou para perder, percebes Zulmira? Nós fomos atirados para a fogueira e depois esqueceram-se de nós. Por isso sinto uma raiva enorme por eu valer tão pouco; por eu ser obrigado a estar aqui e mesmo assim fazerem de conta que eu não existo. Eu sou um carregador de uma Kalash metido numa G3, mas sou tão pouco importante que ninguém dá por isso. Sou uma personagem de uma história mal contada.
De repente lembrei-me do que queria do cacifo e voltei a abri-lo. E lá está a tua foto de novo descolada. A fita-cola é igual à das outras, mas só a tua foto é que se descola. Descola-se no bordo de cima, depois cai, presa no bordo de baixo, e fica de costas para mim com a dedicatória de pernas para o ar: “Gardo-me para ti”. Fiquei imóvel a olhar para aquilo ignorando novamente o que vim fazer.
– Gosto de vos ver assim amigos de novo.
O palerma do furriel a escangalhar-se de riso, agora com o cano da G3 a passar por mim, em direção à parada. Ele deve entrar pela secretaria mas quando sai, passa de propósito pela caserna, para me chatear. Vejo-o durante uns segundos a caminhar na parada e depois desaparece.
Dou conta que ficou aqui o maior silêncio. Não se ouve nada.
Nunca me senti tão só.
Para lá do refeitório a floresta sem fim. Um mundo vegetal que esconde um universo misterioso feito de coisas que me são estranhas e que me fascinam.

Agora que sei, tantos anos depois, Zulmira, que te perdi no dia em que fui para África, penso que estive numa terra que me deslumbrou mas que nunca conheci, onde estive preso sem cadeias, e que combati numa guerra onde morri embora tenha regressado.
Mas o que regressou de mim foi apenas um restinho que a guerra não matou.
A tua foto foi comigo e voltou comigo. Enquanto isso, tudo a mudar à nossa volta. O mundo inteiro enlouquecendo à nossa volta, e o teu sorriso na foto sempre igual. Morreram pessoas, e as que sobreviveram mudaram tanto que se pode dizer que também morreram e que vieram outras no seu lugar.
Quanto de mim recebeste tu de volta, Zulmira? E quanto de mim guarda ainda a memória do meu amor por ti?
A dada altura, tive uma certeza tão grande – uma certeza absoluta – de que deveria fazer qualquer coisa, mas fiquei parado vendo apenas as coisas deixarem de fazer sentido à minha frente.
Parado, como o teu sorriso na tua foto, o teu sorriso que teimava em se esconder como um mau agouro.
A tua foto a querer dizer-me alguma coisa, como um sinal teu atravessando o mundo todo para chegar até mim. Mas que pode fazer um soldado em que ninguém repara, embora não pudesse estar mais fora do seu lugar? Como um carregador de uma Kalash metido numa G3.
Um soldado preso à guerra, sem ter para onde fugir.
Morri em África, Zulmira; o que regressou de mim foi a parte que resistiu à loucura do mundo, porque não sofre nem ama.
O dedo no gatilho e as mãos já não me tremiam. Deixei de se eu, Zulmira, quando as mãos deixaram de me tremer ao disparar a G3.
Voltava a África se pudesse, voltava ao passado para fazer alguma coisa. Alguma coisa que me fizesse hoje ter a certeza de que não morri lá.
Gostaria de voltar a África para conhecer África sem guerra, sem o peso do perigo que não deixava apreciar a paisagem.
Voltava, para ver como era a largueza da terra sem o cansaço do corpo e a fadiga do olhar, para ver como era a paciência do tempo sem a ansiedade e sem o medo da morte.
E sem a saudade de ti, que me ia modificando lentamente, transformando-me em alguém que fui deixando de conhecer.
Voltava para um tempo onde ainda havia alguma coisa em mim que sofria e que amava, quando olhava o teu sorriso na foto. Um tempo em que o nosso amor ainda fazia sentido.
Voltava, se tu pudesses ir comigo para corrigir a história das nossas vidas. Uma história mal escrita, com uma guerra pelo meio.
Uma história que eu sei, como se ma tivessem contado, sobre um amor de que já não me lembro bem. E o amor precisa de ser lembrado, porque o amor é uma coisa da memória.
Uma história que continuou até hoje, mas que nunca se livrou da guerra.
Esta nossa história, Zulmira, que vamos vivendo e de onde se vê sempre a guerra ao fundo.
Sempre, sempre ao fundo.

Para deficientes visuais, ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódios, aqui.

1 comentário:

António P. Almeida disse...

... "... sempre, sempre ao fundo.", como o dizes, e todos aqueles que lá estivemos, o repetimos.
Um abraço e bom ano.
AA