Para
uma abelha é impossível a vida sem o voo e é inconcebível o mundo sem a cor
ultravioleta. Se uma destas coisas faltasse de repente, todas as abelhas
morreriam.
Tudo
será possível neste mundo, mas precisa de tempo, muito tempo. Seriam precisos
alguns milhões de anos para as abelhas se adaptarem à vida sem sair do chão, e
ao mundo como nós o vemos.
Porém,
uma abelha não sabe que possui esses privilégios que a nós nos são negados, tal
como um daltónico não sabe imediatamente que não distingue o vermelho do verde.
O
interessante é que o que é indispensável para uma abelha pode ser pouco
importante para um ser humano, e talvez por isso é que nunca ouvi falar de
alguém que sentisse falta de ver para além dos três comprimentos de onda da luz
que permitem dar-nos uma imagem tricromática deste mundo.
Mas
a humanidade descobriu que a cor ultravioleta existe sem nunca a ter visto, e é
isto que verdadeiramente me fascina. A pergunta a que esta constatação conduz
imediatamente é: os homens teriam alguma vez descoberto que a própria luz
existe se fossem cegos?
Talvez
lhe chamássemos apenas radiação eletromagnética, mas seguramente que a
descobriríamos mais cedo ou mais tarde, tal como descobrimos o raio X ou as
ondas rádio, que afinal são apenas luz em comprimentos de onda e frequências
que não temos a menor hipótese de detectar naturalmente.
A
ilusão de vermos o mundo no seu infinito esplendor de cores e matizes, só
porque o catálogo de um monitor de alta definição de PC nos garante que veremos
64 milhões de cores, é pouco menos que ingénua. Na verdade somos quase cegos
perante a luz. Perante a totalidade da luz.
Algures
na hélice do nosso ADN acomodam-se os cromossomas que contêm os alelos de
pigmentação que codificam os únicos três comprimentos de onda que nos convencem
que vale a pena investir à volta de mil euros para vermos a realidade virtual
em alta definição. Bastaria sermos cães ou cavalos para pouparmos esse dinheiro,
dado que para a quase totalidade dos mamíferos bastam dois alelos de
pigmentação para desfrutarem do que para eles é também, seguramente, o mundo no
seu infinito esplendor de cores e matizes.
O
terceiro alelo parece ser o resultado de uma evolução genética à velocidade
estonteante a que estas coisas costumam acontecer, isto é, mais uns quantos
milhões de anos. Isso ocorria à medida que os primatas se iam tornando
frutívoros e tinham todo o interesse em esperar que a fruta amadurecesse. Para
isso precisavam dramaticamente de algum meio de detectar o comprimento de onda
longo da luz, que se encontra entre os 630 e os 740 nanómetros, ou seja, o
vermelho; o que veio mais tarde a revelar-se muito útil também para sabermos
quando é que não convém atravessar nas passadeiras para peões.
Não
sabemos, e acho que jamais saberemos, se foi a visão tricromática que nos
tornou frutívoros, se foi essa nossa dieta que nos levou a criar o
tricromatismo para não ficarmos com os dentes botos quando comemos diospiros. Uma
coisa é certa, a bandeira nacional teria obviamente outras cores, porque
seríamos todos daltónicos.
Maravilhamo-nos
com as limitadíssimas dádivas da Natureza, seja uma cegueira parcial em relação
à amplitude total da luz, seja um sentido da audição paupérrimo, que
corresponde a surdez para um morcego ou mesmo para um cão, seja estarmos
condenados a viver na terra firme porque não temos asas.
Mas
com essas limitações descobrimos e usamos o mundo muito para além das fronteiras
humanas. Carl Sagan dizia isto melhor, reduzindo metaforicamente o Tempo e o
Espaço à escala inteligível de um dia. E calculou que se
o Universo tivesse um dia de vida, a humanidade teria tido apenas o tempo de um
pestanejar para o entender. Para um abrir e fechar de olhos, convenhamos que
sabemos muito sobre o mundo que nos rodeia.
E
se em vez de vermos 3 comprimentos de onda da luz, víssemos apenas dois, e
fossemos todos cegos para o verde e o vermelho, até onde teríamos ido no
conhecimento do mundo? E se fossemos cegos para toda a luz? A julgar pelo que
descobrimos para além do alcance dos nossos sentidos, o mais certo é que
teríamos sido capazes de descobrir também algumas das coisas que damos como
adquiridas por nos ter sido possível percepcioná-las naturalmente.
Vemos
a Lua e as estrelas, mas não vemos os buracos negros e os quasares. Vemos os
animais e as plantas, mas não vemos as bactérias e os vírus. Vemos apenas um
curtíssimo espectro da luz, que na sua amplitude conhecida vai dos raios gama
às ondas rádio.
As
nossas realizações com os meios limitados de que somos dotados deveriam ser
motivo de orgulho para uma espécie que ocupa o topo da cadeia alimentar, se não
tivesse sido sempre motivo de arrogância em relação às outras espécies, ou
mesmo aos seus pares que, por alguma contingência ou acidente da Natureza, não
dispõem de todas as modestas ferramentas naturais para lidarem com o mundo.
Quando
criámos os semáforos ignorámos os 4 por cento de daltónicos que há entre nós, e
escolhemos justamente as cores que eles não distinguem, levámos décadas até
decidirmos começar a acrescentar um sinal sonoro para os 180 milhões que não
conseguem ver sequer os semáforos. E continuamos orgulhosos.
E
lá, no emaranhado da nossa hélice de ADN, os três alelos cromáticos permitem
que o nosso cérebro misture as três cores primárias que lhe fornecem, para
conseguir justificar o investimento que fizemos no monitor de alta definição.
Porém,
como os dois comprimentos de onda longos, que correspondem ao vermelho e ao
verde, são codificados por alelos do cromossoma X, o cromossoma sexual
feminino, e as mulheres têm dois, não falta quem pense que é considerável a
probabilidade de as mulheres percecionarem uma mais rica variedade de
tonalidades destas cores, embora não tenham disso consciência, tal como os
daltónicos não se apercebem imediatamente da sua limitação.
Se
isso é verdade, e se essa probabilidade se concretizar numa evolução para um
tetracromatismo nas mulheres, e se ainda tivermos em conta que os homens são
minoritários, resta-nos desejar que não nos venham a considerar a todos
deficientes visuais. É que esta história tem um antecedente natural. Os primatas
do novo mundo, como o macaco-esquilo, veem o mundo diferentemente, conforme são
machos ou fêmeas, justamente pelo mesmo motivo; o segundo cromossoma feminino
nas fêmeas já permitiu a evolução para o tricromatismo, enquanto os machos permanecem
daltónicos, como os restantes mamíferos.
Se
conquistámos o mundo para além das nossas limitações, não temos desculpa em
criarmos obstáculos àqueles para quem essas limitações são apenas ligeiramente
maiores à escala universal. Obstáculos que em grande parte resultam de termos
pensado no aumento do conforto da maioria, ignorando as necessidades básicas de
alguns.
Talvez
as mulheres venham a ser mais democráticas.
À
memória de José Guerra, a quem um dia roubaram a luz, mas jamais a lucidez.
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