Eu? Eu estou bem. Só quando passa o efeito dos remédios é que tudo na vida parece murchar. E a vida parece um lugar onde não se pode estar.
Estou cheio de cicatrizes, furriel, cicatrizes por dentro, das que não saram.
E você furriel? Como estão as suas cicatrizes? Não tenha vergonha das suas cicatrizes furriel, elas são a prova de que corremos riscos; e viver é correr riscos. Uns ganham ou perdem, outros nem uma coisa nem outra, porque não correm riscos. Eu não estou doente da cabeça furriel, eu tenho saudades… Bastos, tenho saudades da guerra. Lá, quando as coisas corriam mal, a gente trocava-lhes as voltas, a gente atacava os gajos pelos flancos. Com o tempo aprendemos a resolver os problemas à porrada. Pró fim até sabia bem quando tínhamos que dar uns tiritos. Você, esteve lá pouco tempo…
Estiveste lá pouco tempo, e às vezes penso que tiveste sorte. Ficaste sem uma perna, não é pera doce, mas há coisas piores furriel… Bastos, acho que aquilo deu cabo de mim. Fiquei amputado por dentro. Mas ainda não inventaram uma prótese para esta amputação. Atafulham-me com remédios e eu fico meio grogue; e depois que se lixe, fico a voar baixinho.
Isto aqui é assim. Um dia puxa o outro. Começa devagar e vai acelerando, acelerando, e no final do dia, pumba! Uma carrada de comprimidos e eu fico sem sentir nada; nem mau, nem bom.
É por isso que às vezes me lembro que se ao menos pudesse trocar as voltas a isto, atacar pelos flancos… - Ai é? Vocês estão aí emboscados à nossa espera? - E nós atrás deles pelo capim fora, lembra-se ó furriel... ó Bastos, lembras-te? Nesse dia não tiraste fotografias. Estavas mais branco que a cal da parede. Mas os gajos fugiram, e no mato quem é que apanha aqueles gajos? Nem pensar.
Depois, no Chindorilho, foste ferido. E tu a dizeres que nunca mais jogavas à bola. Às vezes penso nisso e apetece-me rir… Tu nunca jogaste à bola, foste sempre um nabo. Mas na altura até me vieram as lágrimas aos olhos. "Nunca mais jogo à bola." Dizias tu para o enfermeiro Costa.
Mas nós ficámos lá, percebes? Aquilo parecia que não tinha mais fim. Aquilo mexe com um gajo, Manel. O pessoal aqui não sabe. E a malta nova então? Às vezes começo a falar sobre estas coisas e a Zulmira olha para a filha, a filha olha para ela, e passado um bocado já nem me ouvem. Eu calo-me, e elas nem notam que eu não acabei a história.
Deve ser uma chatice ouvir um gajo falar destas coisas. Nós é que sabemos como aquilo foi, não é?
Até eu acabei por ficar cansado de me ouvir. Ouço os meus pensamentos, percebes? Estou cansado.
Estou farto de ser eu. Queria despir-me de mim como quem tira um casaco usado de mais. E ficar nu, livre de mim. E depois, quem sabe, sendo outro, ter esperança de novo. Ilusão de novo ao menos.
Estou cansado. A cada dia que passa parece que acabei uma grande empreitada, mas que logo tenho que recomeçar. Tenho um relógio dentro de mim que não pára, um carrossel fantasma sem um único passageiro, que gira, gira, e não vai a lado nenhum.
Mal fecho a pestana, logo me voltam os pesadelos. Para onde foram os meus sonhos é que eu não sei. Mal me deito para dormir vejo logo um milhão de olhos a acusarem-me, sem eu saber de quê. Pessoas e sombras. Mas as sombras são muito mais que as pessoas.
Não me olhes assim sem dizer nada. Tinhas sempre uma palavra pronta para dizer, uma piada. Mesmo quando as coisas não eram para piadas.
Metia-te confusão quando me vias escrever sem pôr as cartas no correio, não era? E tu: - Hás de arranjar inspiração antes de a guerra acabar!
Acho que nessa altura já me incomodavam os meus pensamentos, e precisava de os pôr cá para fora. Punha-os no papel e pronto, ficava mais sossegado. O que é que um homem que anda a brincar com a morte diz à mulher que deixou em casa? Ela queria ir para França, e eu: - Nem sou homem nem sou nada...
Mas mal pus os pés em Mueda vi logo que devia ter dado à sola em vez de me armar em parvo. Tu é que levavas aquilo a sério, Manel, pelo menos no princípio, porque depois começaste a abandalhar, e a tirar fotografias a tudo, até nos golpes-de-mão.
A Zulmira diz que agora falas contra a guerra. Aquilo muda a gente, não é?
Foi lentamente ou aconteceu alguma coisa que nos deu a volta? Sei que aconteceu alguma coisa, mas não me lembro do que foi. Sei que me esqueci, mas como se tivesse acabado de pensar nisso um minuto antes, e logo me fugisse a ideia. É como se me tivessem amputado tal como te amputaram a ti. Falta-me esse bocado. O lugar onde estava essa lembrança de que não me consigo lembrar. E sabes lá como isso me incomoda? É um pesadelo.
Quando voltares, pede à Zulmira… não, não, talvez seja melhor pedires à minha filha. Pede-lhe que me traga fruta, ou flores, ou um livro. Algo que me traga algum afeto.
Acho que as assusta este lugar. Da primeira vez que aqui estive, vinham todas as semanas ver-me. Agora ainda vêm, mas menos.
Sabes como era às vezes, quando íamos pró mato? Aquela impressão de que as coisas iam correr mal? É o que sinto agora todos os dias.
Parece que ainda te estou a ver a fazer desenhos com um pauzito na areia da picada. Eu com a ideia de que havia um muro enorme à nossa frente, ou então um precipício. Algo que não deixaria a gente sair dali.
Agora, ao pensar nisso, iria jurar que não se ouvia nada. Havia um grande silêncio. Aquele silêncio que ouvimos quando morre alguém. O silêncio de a vida se ter tornado um lugar onde tudo murcha, onde não se pode estar.
Levei tempo a perceber. Só havia lugar para dois no helicóptero. Eu só pensava: - A esta hora da tarde o que ficar vai morrer.
Nem me recordo da emboscada. Atirei-me para de baixo da Berliet e deixei-me lá estar. De vez em quando dava um tiro, mas o capim não deixava ver ninguém. O alferes mais uns cinco gajos atacaram os turras pelo flanco esquerdo e eles fugiram. Resultado: três feridos graves. Depois tu ficaste a fazer riscos no chão como se estivesses a chorar.
Eu perguntei: - Quem é que vai ficar, furriel?
Olhaste para mim como se eu estivesse a falar chinês e passado muito tempo disseste: - Sei lá. Ou o que tiver mais hipóteses de aguentar a noite toda, ou o que não tiver hipóteses nenhumas.
Depois, continuaste a rabiscar com o pauzito no chão, como se estivesses a calcular as hipóteses. Há muitas maneiras de chorar.
Lembro-me tão bem de todas as coisas que não têm interesse nenhum e não me lembro nada do que foi realmente importante. Qual deles ficou? Será que foi porque aconteceram muitas coisas depois disso que já não me lembro? É muito estranho que não me lembre. Quem decidiu qual deles deveria morrer? Quem foi que fez o papel de Deus? Como se pode viver depois de uma escolha dessas? Uma escolha tão danada que se apagou da minha cabeça.
A verdade é que se me apagaram muitas coisas da minha cabeça. Não sei ao certo se seria melhor conseguir lembrar-me, mas pelo menos teria mais descanso. Perco noites a tentar recordar-me de uma coisa e depois já nem me lembro a que propósito é que me queria recordar.
É como se eu me tivesse esquecido para não ter que fazer luto. A vida é assim, não é furriel? Todo o afeto acaba em luto.
Que foi que me aconteceu, furriel? Tu estiveste lá pouco tempo.... mas aconteceu alguma coisa importante, muito importante. Muito importante de mais...
Sabes o que penso? Penso que nas guerras Deus mete dispensa e quem fica a mandar é o Diabo.
Depois, Deus quer voltar de novo ao ativo mas o Diabo não deixa. Pelo menos comigo é assim, furriel. Ainda tenho o Diabo no ativo.
Por isso é que eu não posso escolher, não posso decidir o que faço à minha vida. Não se pode escolher, quando é o Diabo que está a mandar.
Também deste opinião? Atiraram a moeda ao ar? Ou fizeram Pim pam pum! Cada bola mata um... e depois... ficou um ao calhas? Um escolhido pelo Diabo.
Também se te varreu isso da cabeça, ou consegues atirar tudo para trás das costas? "Atira isso pra trás das costas." Diz a Zulmira para mim, como se fosse possível atirar uma guerra inteira para trás das costas. Eu bem quero esquecer, mas o que quero esquecer não esqueço e aquilo de que me quero lembrar não me lembro. "Tens que ter coragem." Diz ela. Coragem... As pessoas acham que isto é falta de coragem. Isto são saudades. Não saudades da guerra, Manel. Saudades de mim nessa altura. Saudades de quando eu era outro e tinha medo e coragem e era tudo nítido. Agora não sinto nada, está tudo embaçado, e eu sou um casaco velho que não consigo despir.
Quando andavas de máquina fotográfica na mão e com a G3 às costas, era por falta de coragem, era? Eu bem vi. Aquilo começou a mexer contigo. Foi ou não foi? Ficavas lá mais uns tempos e vinhas pior do que eu.
Fala com a minha filha, pede-lhe que me traga flores. Que me traga alguma coisa viçosa que me faça sentir que a vida é novamente um lugar onde se pode estar.
Sabes? Acho que devia ter ficado em África. Quer dizer, acho que devia ter morrido lá. Pensei assim muita vez: se voltar nunca mais serei o mesmo; nada será o mesmo. Nunca mais.
Se ficar aqui, ao menos as pessoas que gostam de mim vão recordar-me como eu era e não como o ramo murcho que sou agora. Como eu era quando ainda gostavam de mim.
Antes de Deus ter metido dispensa e o Diabo ter ficado no ativo.
Olha, ela que não me traga flores, Manel, as flores também murcham.
mcbastos
In Elo de Fevereiro de 2013
1 comentário:
A África, para sempre ficará na memória de quem por lá passou, apesar de tão curta estadia, como o dizes no texto, mas que tão intensamente, melhor, marcadamente, a viveram, como sucedeu com a n/ geração.
Bom seria que aqueles que hoje, no poder,querem a todo o custo esconder o que foi aquela guerra, mas que nós não a podemos esquecer, como o descreve o teu interlocutor.
Certo de que vais continuar a impedir que a memória de quanto passamos seja esquecida, aqui fica um abraço e, por que não , um obrigado.
António P. Almeida (último capitão da 3503)
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