You haven't looked at me that way in years,
But I'm still here.
Hoje parei. Algo me chamou a atenção.
Ao descer a rua costumo olhar de viés para a direita. Emoldurada por cortinados e ladeada de vasos de sardinheiras lá está sempre a velha. A velha olhando a rua.
Em que estará pensando uma pessoa cujo rosto nunca muda de expressão?
Parece uma estátua de madeira de oliveira com as nervuras concêntricas a pronunciarem as maçãs do rosto. Eu passo, as demais pessoas passam; todos passamos e a velha fica.
Dia após dia, ali, vendo o movimento do trânsito e o de algum ocasional peão, pedestre, caminhante, ou sei lá como chamar-lhe, que cada vez é mais raro; tão raro que a velha já não nos segue com o olhar ao passarmos, apenas dirige o olhar para o trânsito que vê como uma fiada de casulos metálicos presumivelmente com gente dentro.
De cada vez que passo, dá-me a ideia que se vê menos, cada vez mais encoberta pelas cortinas, sempre olhando a rua, a madeira de oliveira do rosto, mais nodosa, mais macilenta, mais mirrada.
Será que sai dali para comer, para dormir? Será que vêm visitá-la?
Os olhos acinzentados perdem brilho a cada dia que passa, como se lentamente, também, fossem perdendo a capacidade de ver. A sua imaginação reduzida à imagem de uma ocorrência resgatada do esquecimento: um diapositivo projetado na tela da memória, ao acaso, imóvel ele também, sem o alívio de se ver rendido por outro diapositivo que lhe venha dar descanso.
Se fosse possível assistir ao diaporama das suas memórias ordenadamente, e não como um puzzle feito dessas imagens apanhadas ao acaso e colocadas no projetor da memória sem critério, haveríamos de ver a alternância usual dos prazeres e das dores, da esperança e do desalento, dos amores e dos ódios; de todas as coisas de sinal contrário que compõem a vida de uma pessoa, e, algures, há muitos anos já, haveríamos de encontrar o seu rosto jovem a ver-se ao espelho, a arranjar-se para um encontro; o seu rosto luminoso, expressivo e belo.
Por favor, que tenha sido bela esta mulher que agora definha olhando o mundo.
Diapositivo após diapositivo, e agora, uma imagem de quando era tida como um ser precioso para alguém, um ser amado pela pureza, pela candura, como resultado de um outro amor anterior a ela. Quando foi que isso acabou? Quando deixou de ser amada assim?
Houve uma mudança, entre ser amada assim e começar a ver-se mulher nos olhos dos que a desejavam, como então, há muitos anos já, ao ver-se a si própria ao espelho, antecipando o prazer de ser desfrutada.
Algures na fiada dos dias que é impossível reconstituir agora, algo provavelmente aconteceu que alterou a sua vida, uma partida, uma morte talvez. Talvez a eclosão da guerra em África lhe tenha interrompido um romance; uma guerra quase do outro lado do mundo e ela vítima aqui, como um dano colateral.
Ou simplesmente uma decisão que alguém tomou, ou um incidente sem grande relevância mas que alterou a trajetória da sua vida; talvez apenas a correnteza dos dias, talvez tão só a fiada das horas, a teimosia dos segundos a caírem um após outro para pontilharem a linha cruel do tempo.
A ver-se ao espelho. A desfrutar a própria beleza. Há algo de solitário nisso, algo de esfíngico, de intemporal. O olhar a prender a beleza e a ignorar a perspetiva do tempo. Um momento bela – bela para sempre. A desmentir que a beleza não passa de uma ilusão, ou pelo menos de uma simples contingência que a mente humana amplia para compensar a consciência de se saber degradável e perecível.
Mas é essa ilusão e a consciência disso que nos faz divinos.
A ver-se ao espelho. Os seios levantando e descendo ligeiramente, como algo feito para se lhes ver o peso, ao ritmo do peito que arfa de ansiedade. A roupa apenas sobre o corpo. Há tão pouco tempo vestida, que parece só pousada e se adivinha o corpo sem ela. A esperança no olhar a ser devolvida pelo espelho, uma esperança de mulher bela que não antecipa uma aventura mas uma vida de ventura, justamente por se saber bela.
De tudo isso, se isso houve, ficou um resto, uma coisa esquecida à beira da vida, à beira de uma estrada, sem ao menos chamar à atenção de quem passa. Uma sombra sem objeto que observa o mundo a que não pertence já, como uma não-existência apenas adiada.
Será que foi mesmo bela? Será que foi amada? Será que teve uma vida de ventura? Será que foi jovem?
Como é esta aritmética da vida, onde não conseguimos ver os seus 18 anos, de entre os 81 que já terá?
Quem sabe, não terá sido apenas uma mulher comum, com um percurso linear, sem grandes paixões nem grandes sobressaltos. Parada no espaço, mas viajante no tempo. Com uma vida longa, em que foi deixando pelo caminho todos os seus companheiros de viagem.
Habituei-me à sua figura, sem lhe dar atenção. Será que também se terá habituado a ver-me passar, e assim me tenha tornado familiar para ela? Será que se eu tivesse parado, uma vez que fosse, e lhe tivesse dirigido o olhar, ela me teria sorrido? Naquela rua onde ninguém passa a pé, éramos, a maior parte das vezes, os únicos seres humanos visíveis, e no entanto, eu passei sempre sem parar, sempre sem olhar para ela, porque esta vida urbana nos desumaniza, e encararmos um semelhante tornou-se um ato de impudência ou de devassa. Habituei-me à sua presença silenciosa do mesmo modo que nos habituamos a um ruído de fundo.
Hoje parei. Algo me chamou a atenção. A ausência da sua silhueta esfíngica atraiu-me o olhar. A janela está vazia como um olho vazado. Atrás das cortinas de renda apenas o negrume de uma sala sem alma. E de repente toda aquela fachada do prédio se transformou num corpo morto a que só falta cair para o lado, porque cresceu em mim a certeza absoluta de que não voltarei a sentir o cálido alento de humanidade que a figura daquela senhora idosa me oferecia. Porque me parece irremissível o despovoamento da cidade e do mundo, de cada vez que um só dos seus habitantes nos abandone.
Será que é por causa deste trauma obsessivo, que não me deixará nunca, de ter visto a meu lado caírem desumanamente pessoas que eu não conhecia antes, mas que a solidão, o sofrimento e a guerra me ofereceram como amigos?
Os feridos e os mortos partem e os sobreviventes continuam com a ilusão de que têm algo importante para fazer, sem se darem conta que a sua progressão os irá aproximar da morte. Todos os caminhos se encontrarão nesse objetivo comum da vida, e, se pararmos um pouco antes de darmos o derradeiro passo, poderemos reverter ilusoriamente o tempo através da memória, e se o fizermos, talvez nos lembremos de como não demos verdadeiramente importância à felicidade de um dia termos estado todos juntos.
Os carros, em filas de latas atrás de latas, a poluírem a rua com fealdade, mais do que com monóxido de carbono. Os rostos por detrás dos para-brisas a envelhecerem assustadoramente como crisálidas dentro daqueles casulos móveis, sem a esperança de uma metamorfose que um dia lhes dê asas.
De repente a cidade tão grande. De repente a rua deserta. Regresso a casa de luto. Um sobrevivente desamparado pela rua abaixo.
A janela vazia como um olho vazado, uma moldura sem quadro; uma janela que deixa antever a noite aprisionada para sempre dentro de casa.
Vou descendo a rua sentindo que ficou algo para trás, algo de irrecuperável, porque o rio do trânsito que desce a rua leva consigo a veleidade de um tempo presente em que seria possível deixar uma impressão pessoal, uma marca que resistisse para além da memória.
É sempre isso que nos faz caminhar. Tentar ultrapassar essa torrente que na verdade acabará por nos deixar ficar a todos para trás, como nós fomos deixando os outros, enquanto tentávamos sobreviver. Mas ao sobrevivermos a todos, não acabaremos por morrer sozinhos?
Um após outro, pelo caminho, quantos perdemos? Quantos tombaram enquanto progredíamos ao encontro do inimigo? E de cada vez, que parte de nós perdemos também?
O capitão a chorar, com as mãos no tablier da Berliet como se fosse a amurada de um navio, olhando os helicópteros que levavam os mortos e os feridos, enquanto a coluna finalmente seguia para o objetivo. E na sala do comando, em Mueda, espetaram um alfinete no mapa com alívio, marcando o local onde íamos morrendo todos. Como é difícil o trabalho dos burocratas da guerra!
E depois a coluna seguiu, o sangue regressou ao corpo. E apesar de menos, sentimos o conforto da companhia uns dos outros, porque é muito mais difícil morrer sozinho.
Hoje parei. Algo me chamou a atenção.
Ao descer a rua costumo olhar de viés para a direita. Emoldurada por cortinados e ladeada de vasos de sardinheiras lá está sempre a velha. A velha olhando a rua.
Em que estará pensando uma pessoa cujo rosto nunca muda de expressão?
Parece uma estátua de madeira de oliveira com as nervuras concêntricas a pronunciarem as maçãs do rosto. Eu passo, as demais pessoas passam; todos passamos e a velha fica.
Dia após dia, ali, vendo o movimento do trânsito e o de algum ocasional peão, pedestre, caminhante, ou sei lá como chamar-lhe, que cada vez é mais raro; tão raro que a velha já não nos segue com o olhar ao passarmos, apenas dirige o olhar para o trânsito que vê como uma fiada de casulos metálicos presumivelmente com gente dentro.
De cada vez que passo, dá-me a ideia que se vê menos, cada vez mais encoberta pelas cortinas, sempre olhando a rua, a madeira de oliveira do rosto, mais nodosa, mais macilenta, mais mirrada.
Será que sai dali para comer, para dormir? Será que vêm visitá-la?
Os olhos acinzentados perdem brilho a cada dia que passa, como se lentamente, também, fossem perdendo a capacidade de ver. A sua imaginação reduzida à imagem de uma ocorrência resgatada do esquecimento: um diapositivo projetado na tela da memória, ao acaso, imóvel ele também, sem o alívio de se ver rendido por outro diapositivo que lhe venha dar descanso.
Se fosse possível assistir ao diaporama das suas memórias ordenadamente, e não como um puzzle feito dessas imagens apanhadas ao acaso e colocadas no projetor da memória sem critério, haveríamos de ver a alternância usual dos prazeres e das dores, da esperança e do desalento, dos amores e dos ódios; de todas as coisas de sinal contrário que compõem a vida de uma pessoa, e, algures, há muitos anos já, haveríamos de encontrar o seu rosto jovem a ver-se ao espelho, a arranjar-se para um encontro; o seu rosto luminoso, expressivo e belo.
Por favor, que tenha sido bela esta mulher que agora definha olhando o mundo.
Diapositivo após diapositivo, e agora, uma imagem de quando era tida como um ser precioso para alguém, um ser amado pela pureza, pela candura, como resultado de um outro amor anterior a ela. Quando foi que isso acabou? Quando deixou de ser amada assim?
Houve uma mudança, entre ser amada assim e começar a ver-se mulher nos olhos dos que a desejavam, como então, há muitos anos já, ao ver-se a si própria ao espelho, antecipando o prazer de ser desfrutada.
Algures na fiada dos dias que é impossível reconstituir agora, algo provavelmente aconteceu que alterou a sua vida, uma partida, uma morte talvez. Talvez a eclosão da guerra em África lhe tenha interrompido um romance; uma guerra quase do outro lado do mundo e ela vítima aqui, como um dano colateral.
Ou simplesmente uma decisão que alguém tomou, ou um incidente sem grande relevância mas que alterou a trajetória da sua vida; talvez apenas a correnteza dos dias, talvez tão só a fiada das horas, a teimosia dos segundos a caírem um após outro para pontilharem a linha cruel do tempo.
A ver-se ao espelho. A desfrutar a própria beleza. Há algo de solitário nisso, algo de esfíngico, de intemporal. O olhar a prender a beleza e a ignorar a perspetiva do tempo. Um momento bela – bela para sempre. A desmentir que a beleza não passa de uma ilusão, ou pelo menos de uma simples contingência que a mente humana amplia para compensar a consciência de se saber degradável e perecível.
Mas é essa ilusão e a consciência disso que nos faz divinos.
A ver-se ao espelho. Os seios levantando e descendo ligeiramente, como algo feito para se lhes ver o peso, ao ritmo do peito que arfa de ansiedade. A roupa apenas sobre o corpo. Há tão pouco tempo vestida, que parece só pousada e se adivinha o corpo sem ela. A esperança no olhar a ser devolvida pelo espelho, uma esperança de mulher bela que não antecipa uma aventura mas uma vida de ventura, justamente por se saber bela.
De tudo isso, se isso houve, ficou um resto, uma coisa esquecida à beira da vida, à beira de uma estrada, sem ao menos chamar à atenção de quem passa. Uma sombra sem objeto que observa o mundo a que não pertence já, como uma não-existência apenas adiada.
Será que foi mesmo bela? Será que foi amada? Será que teve uma vida de ventura? Será que foi jovem?
Como é esta aritmética da vida, onde não conseguimos ver os seus 18 anos, de entre os 81 que já terá?
Quem sabe, não terá sido apenas uma mulher comum, com um percurso linear, sem grandes paixões nem grandes sobressaltos. Parada no espaço, mas viajante no tempo. Com uma vida longa, em que foi deixando pelo caminho todos os seus companheiros de viagem.
Habituei-me à sua figura, sem lhe dar atenção. Será que também se terá habituado a ver-me passar, e assim me tenha tornado familiar para ela? Será que se eu tivesse parado, uma vez que fosse, e lhe tivesse dirigido o olhar, ela me teria sorrido? Naquela rua onde ninguém passa a pé, éramos, a maior parte das vezes, os únicos seres humanos visíveis, e no entanto, eu passei sempre sem parar, sempre sem olhar para ela, porque esta vida urbana nos desumaniza, e encararmos um semelhante tornou-se um ato de impudência ou de devassa. Habituei-me à sua presença silenciosa do mesmo modo que nos habituamos a um ruído de fundo.
Hoje parei. Algo me chamou a atenção. A ausência da sua silhueta esfíngica atraiu-me o olhar. A janela está vazia como um olho vazado. Atrás das cortinas de renda apenas o negrume de uma sala sem alma. E de repente toda aquela fachada do prédio se transformou num corpo morto a que só falta cair para o lado, porque cresceu em mim a certeza absoluta de que não voltarei a sentir o cálido alento de humanidade que a figura daquela senhora idosa me oferecia. Porque me parece irremissível o despovoamento da cidade e do mundo, de cada vez que um só dos seus habitantes nos abandone.
Será que é por causa deste trauma obsessivo, que não me deixará nunca, de ter visto a meu lado caírem desumanamente pessoas que eu não conhecia antes, mas que a solidão, o sofrimento e a guerra me ofereceram como amigos?
Os feridos e os mortos partem e os sobreviventes continuam com a ilusão de que têm algo importante para fazer, sem se darem conta que a sua progressão os irá aproximar da morte. Todos os caminhos se encontrarão nesse objetivo comum da vida, e, se pararmos um pouco antes de darmos o derradeiro passo, poderemos reverter ilusoriamente o tempo através da memória, e se o fizermos, talvez nos lembremos de como não demos verdadeiramente importância à felicidade de um dia termos estado todos juntos.
Os carros, em filas de latas atrás de latas, a poluírem a rua com fealdade, mais do que com monóxido de carbono. Os rostos por detrás dos para-brisas a envelhecerem assustadoramente como crisálidas dentro daqueles casulos móveis, sem a esperança de uma metamorfose que um dia lhes dê asas.
De repente a cidade tão grande. De repente a rua deserta. Regresso a casa de luto. Um sobrevivente desamparado pela rua abaixo.
A janela vazia como um olho vazado, uma moldura sem quadro; uma janela que deixa antever a noite aprisionada para sempre dentro de casa.
Vou descendo a rua sentindo que ficou algo para trás, algo de irrecuperável, porque o rio do trânsito que desce a rua leva consigo a veleidade de um tempo presente em que seria possível deixar uma impressão pessoal, uma marca que resistisse para além da memória.
É sempre isso que nos faz caminhar. Tentar ultrapassar essa torrente que na verdade acabará por nos deixar ficar a todos para trás, como nós fomos deixando os outros, enquanto tentávamos sobreviver. Mas ao sobrevivermos a todos, não acabaremos por morrer sozinhos?
Um após outro, pelo caminho, quantos perdemos? Quantos tombaram enquanto progredíamos ao encontro do inimigo? E de cada vez, que parte de nós perdemos também?
O capitão a chorar, com as mãos no tablier da Berliet como se fosse a amurada de um navio, olhando os helicópteros que levavam os mortos e os feridos, enquanto a coluna finalmente seguia para o objetivo. E na sala do comando, em Mueda, espetaram um alfinete no mapa com alívio, marcando o local onde íamos morrendo todos. Como é difícil o trabalho dos burocratas da guerra!
E depois a coluna seguiu, o sangue regressou ao corpo. E apesar de menos, sentimos o conforto da companhia uns dos outros, porque é muito mais difícil morrer sozinho.
1 comentário:
Viva Manuel Bastos!
(...Mas, ao sobrevivermos a todos, não acabaremos por morrer sózinhos?...)
Como sempre, a sua análise oportuna!
Pena não sermos perfeitos, não termos capacidade para tornar mais felizes, os dias daqueles, que partem e nos deixam pensando, que na procura da sobrevivência, nos vamos encontrar mesmo sós!...
Obrigada, por me fazer pensar também... eu também penso assim.
Um abraço da
Felismina
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