A última rosa do verão.
Vieste, minha amiga, conversar comigo nesta noite fria.
Trouxeste o velho disco. Eu trouxe-te uma rosa.
Que aventura é a nossa que desafia as leis do bom senso? Quando te sentas assim a meu lado parece que vens de longe para visitar-me, ou de um passado distante; e um peso no peito faz-me sentir que as rodas do tempo nos deixaram trilhos profundos na alma.
Mas em breve, a música, o vinho e o fogo mostrarão tão só as marcas do tempo nos nossos corpos. E estas, minha amiga, aceitemo-las como atestados de sobrevivência.
Sabia que virias, e enquanto te esperava escrevi estas palavras como quem faz uma canção. Só para pôr nome ao que sinto por ti. É preciso dizer os afetos, não basta senti-los; é preciso dizê-los como se o tempo fosse pouco e houvesse o risco de algo de belo se perder. Como esta última rosa na tarde que arrefecia. Trouxe-a para lhe fazeres companhia, minha amiga. Porque sorris? Não há nada mais triste que uma rosa solitária ao frio.
Tudo o que morre renasce na reciclagem da Natureza. E tudo o que a Natureza dá avulso, o Homem organiza porque ama o belo.
É assim que dos sons faz música, das palavras poesia e das uvas, minha amiga, faz vinho.
Senta-te aqui. Ao meu lado. Ouçamos o disco que me trouxeste. Logo abrirei a garrafa.
Um dia, assusta-me concebê-lo, tudo acabará; mas o que me assusta não é o colapso do tempo, é a extinção da memória.
Sabes, a morte não assusta facilmente um ex-combatente como eu, somos velhos conhecidos. Havemos de morrer, sim; mas a Terra mãe, dos nossos restos, fará plantas e flores e frutos, e os animais alimentar-se-ão deles, e os nossos restos ganharão vida e movimento de novo. O que me assusta é saber que a memória acabará, e com ela todos os afetos. Um dia, ninguém se lembrará de nós, ninguém ouvirá o nosso disco, ninguém beberá deste vinho. Ninguém saberá que para te ver sorrir, resgatei ao frio a última rosa deste verão.
A estrada velha
366 curvas, como os dias de um ano bissexto, e a cada curva a vertigem da beleza.
Que deu nos homens, que desataram a fazer estradas cortando a direito, convencidos que a vida é a menor distância entre dois pontos?
A estrada velha de Penacova não é uma estrada para chegar mais cedo ao fim, é uma estrada para quem acha que a vida deve ser degustada devagar.
Quando não quero chegar cedo a lado nenhum, tomo a estrada mais bela do mundo e faço dançar o carro com a estrada enquanto a estrada dança com o rio.
Chego a Penacova e paro debaixo da Pérgola para olhar o Proventório e o Reconquinho, depois subo ao Penedo Castro para olhar 360 graus em redor e confirmar que o mundo é belo.
Stress de Guerra
Queria que sentisses o cheiro. Não há uma boa descrição para este cheiro. O camuflado de cores desbotadas de tão sujo. Ligeiramente brilhante, porque o suor conseguia embebê-lo e acabava por aflorar à superfície. As mãos que pareciam também camufladas. E as caras. E tudo.
E o cheiro. Habituávamo-nos ao cheiro com o tempo, mas às vezes com uma reviravolta do ar, algo de untuoso e adocicado, como vindo de um cadáver de dias, envolvia-nos. Mas, como se tivesse origem nas nossas entranhas, como se a própria morte já andasse cá dentro há tempos, e quisesse tomar conta de nós, abraçar-nos, esticando para fora os seus finos tentáculos como heras enredando-se sobre um muro.
Queria que sentisses o cheiro, não para te fazer mal, mas para saberes que uma coisa assim não sai. Fica cá dentro.
Fomos, combatemos, sobrevivemos e voltámos, mas trouxemos a guerra dentro de nós. Uma espécie de morte interrompida, inacabada, como uma fera hibernando.
E nós vivemos e fomos felizes e demos prazer e criámos beleza. Mas dentro de cada um de nós como uma doença em estado latente Ela vive aguardando, com a certeza de que um dia vencerá.
Menina da esplanada
Chegas sempre com o ar de quem perdeu a noite. A solidão à tua mesa às vezes parece uma guitarra de Coimbra lamuriando saudades mal resolvidas. De que sonho de princesa acordaste para a realidade plebeia de encontros por telemóvel?
Imagino expedientes canalhas a tentarem aproveitar-se do que resta em ti de esperança, e nesse teu rosto, onde se desenha o perfil egípcio de uma deusa triste, nunca se iluminou um sorriso que eu visse. Esse rosto, que inevitavelmente vai amadurecer e depois fenecer, precisa com urgência de um motivo para sorrir.
Imaginar que foste o amor impossível de um homem apaixonado, a primeira fantasia de um adolescente, a criança que encheu de orgulho um casal ainda jovem; imaginar que um dia foste o bebé de alguém, e que o balanço da tua vida se salda pela ressaca de uma noite perdida, que ensombra o teu rosto encostado a um telemóvel, carrega-me a alma de pesar; sobretudo por não haver um gesto de ternura que te aconchegue esse rosto cansado contra o peito, depois de ter sentido a fartura de prazer do teu corpo; mas como uma dádiva, e não como um roubo.
Se houvesse compaixão debaixo do Sol, um dia ver-te-ia sorrir.
Sinto um desgosto antecipado com a ideia de desistires de vez de algum sonho que te reste, e de aceitares o compromisso possível, como um soldado que se rende apenas para poupar a vida, sem que a sua resignação permita o benefício de uma causa maior.
Então, para viveres a insipidez compartilhada, deixarás de aparecer. E eu sentirei falta desse teu ar de quem perdeu a noite, desse teu ar de viúva da esperança que povoa de drama a minha imaginação; e a partir daí, a esplanada encher-se-á de desalento, sem ao menos esse resquício de afeto que agora partilhas com alguém por telemóvel; e onde eu, de longe, contigo partilho a solidão.
E onde, às vezes, até parece que o trinado condoído de uma guitarra de Coimbra nos faz companhia.
Memória imprecisa
Surgiu de repente por entre o capim e eu ergui a arma. Uma jovem maconde escavando mandioca sorriu para mim. Baixei a arma.
Sei que o capim era alto, sei que sorria, sei que se ouviam vozes ao longe e sei que o meu coração batia com força, mas já não sei se de susto ou de desejo. Quando tento lembrar-me dessa diferença só me ocorre que é demasiadamente curta a distância entre o prazer e a morte.
Não ficou quase nada na minha memória, a não ser a impressão que me contaram isto há imenso tempo.
Verruga
A médica olhou-me sem entender, e eu repeti: Não quero mandar analisar nada. Se for algo maligno haveria mais alguma coisa a fazer neste momento para além de ter removido a verruga? – Não, nada mais. – Então qual é a utilidade? – Saber a verdade! – Mas eu já sei a verdade. Vou morrer de certeza absoluta, vamos todos; mas não saber quando, nem como, é que nos permite a ilusão da felicidade.
Ao sair daqui posso ser esmagado contra a parede por um autocarro, mas até lá posso viver o melhor momento da minha vida e não quero perder essa hipótese por nada. Se souber já, poderei tornar-me num condenado no corredor da morte, e a felicidade passa a ser impossível; passarei a ser um morto a prazo.
Desde que articulámos a primeira palavra que andamos a fazer perguntas, mas não é para sabermos a verdade sobre coisa nenhuma, é porque temos a esperança que uma dessas perguntas venha a ter uma resposta que mude uma pequena coisa nas nossas vidas, uma pequena coisa que nos faça menos infelizes. Saber antecipadamente as coisas, retira-nos a necessidade de fazer perguntas e não nos garante apenas que ficaremos sem respostas, garante-nos sobretudo que ficaremos sem esperança.
Queria que sentisses o cheiro. Não há uma boa descrição para este cheiro. O camuflado de cores desbotadas de tão sujo. Ligeiramente brilhante, porque o suor conseguia embebê-lo e acabava por aflorar à superfície. As mãos que pareciam também camufladas. E as caras. E tudo.
E o cheiro. Habituávamo-nos ao cheiro com o tempo, mas às vezes com uma reviravolta do ar, algo de untuoso e adocicado, como vindo de um cadáver de dias, envolvia-nos. Mas, como se tivesse origem nas nossas entranhas, como se a própria morte já andasse cá dentro há tempos, e quisesse tomar conta de nós, abraçar-nos, esticando para fora os seus finos tentáculos como heras enredando-se sobre um muro.
Queria que sentisses o cheiro, não para te fazer mal, mas para saberes que uma coisa assim não sai. Fica cá dentro.
Fomos, combatemos, sobrevivemos e voltámos, mas trouxemos a guerra dentro de nós. Uma espécie de morte interrompida, inacabada, como uma fera hibernando.
E nós vivemos e fomos felizes e demos prazer e criámos beleza. Mas dentro de cada um de nós como uma doença em estado latente Ela vive aguardando, com a certeza de que um dia vencerá.
Menina da esplanada
Chegas sempre com o ar de quem perdeu a noite. A solidão à tua mesa às vezes parece uma guitarra de Coimbra lamuriando saudades mal resolvidas. De que sonho de princesa acordaste para a realidade plebeia de encontros por telemóvel?
Imagino expedientes canalhas a tentarem aproveitar-se do que resta em ti de esperança, e nesse teu rosto, onde se desenha o perfil egípcio de uma deusa triste, nunca se iluminou um sorriso que eu visse. Esse rosto, que inevitavelmente vai amadurecer e depois fenecer, precisa com urgência de um motivo para sorrir.
Imaginar que foste o amor impossível de um homem apaixonado, a primeira fantasia de um adolescente, a criança que encheu de orgulho um casal ainda jovem; imaginar que um dia foste o bebé de alguém, e que o balanço da tua vida se salda pela ressaca de uma noite perdida, que ensombra o teu rosto encostado a um telemóvel, carrega-me a alma de pesar; sobretudo por não haver um gesto de ternura que te aconchegue esse rosto cansado contra o peito, depois de ter sentido a fartura de prazer do teu corpo; mas como uma dádiva, e não como um roubo.
Se houvesse compaixão debaixo do Sol, um dia ver-te-ia sorrir.
Sinto um desgosto antecipado com a ideia de desistires de vez de algum sonho que te reste, e de aceitares o compromisso possível, como um soldado que se rende apenas para poupar a vida, sem que a sua resignação permita o benefício de uma causa maior.
Então, para viveres a insipidez compartilhada, deixarás de aparecer. E eu sentirei falta desse teu ar de quem perdeu a noite, desse teu ar de viúva da esperança que povoa de drama a minha imaginação; e a partir daí, a esplanada encher-se-á de desalento, sem ao menos esse resquício de afeto que agora partilhas com alguém por telemóvel; e onde eu, de longe, contigo partilho a solidão.
E onde, às vezes, até parece que o trinado condoído de uma guitarra de Coimbra nos faz companhia.
Memória imprecisa
Surgiu de repente por entre o capim e eu ergui a arma. Uma jovem maconde escavando mandioca sorriu para mim. Baixei a arma.
Sei que o capim era alto, sei que sorria, sei que se ouviam vozes ao longe e sei que o meu coração batia com força, mas já não sei se de susto ou de desejo. Quando tento lembrar-me dessa diferença só me ocorre que é demasiadamente curta a distância entre o prazer e a morte.
Não ficou quase nada na minha memória, a não ser a impressão que me contaram isto há imenso tempo.
Verruga
A médica olhou-me sem entender, e eu repeti: Não quero mandar analisar nada. Se for algo maligno haveria mais alguma coisa a fazer neste momento para além de ter removido a verruga? – Não, nada mais. – Então qual é a utilidade? – Saber a verdade! – Mas eu já sei a verdade. Vou morrer de certeza absoluta, vamos todos; mas não saber quando, nem como, é que nos permite a ilusão da felicidade.
Ao sair daqui posso ser esmagado contra a parede por um autocarro, mas até lá posso viver o melhor momento da minha vida e não quero perder essa hipótese por nada. Se souber já, poderei tornar-me num condenado no corredor da morte, e a felicidade passa a ser impossível; passarei a ser um morto a prazo.
Desde que articulámos a primeira palavra que andamos a fazer perguntas, mas não é para sabermos a verdade sobre coisa nenhuma, é porque temos a esperança que uma dessas perguntas venha a ter uma resposta que mude uma pequena coisa nas nossas vidas, uma pequena coisa que nos faça menos infelizes. Saber antecipadamente as coisas, retira-nos a necessidade de fazer perguntas e não nos garante apenas que ficaremos sem respostas, garante-nos sobretudo que ficaremos sem esperança.
3 comentários:
Como a imaginação é fértil na construção da prosa, "embebida em nacos de poesia".
Simplesmente magnifico.
Um abraço
Carlos Vardasca
Muito Bom !
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