4.2.15

A Sandes do Sargento

Regressar a casa e não trazer nada. Nem a memória de um ato generoso. Nem ao menos a certeza de uma dor honrosa. Nada.
Do avião, Lisboa é um arraial de luzes na noite da minha chegada.
Num salto despropositado, a memória vai-me buscar uma outra noite no meio do cacimbo, com um vulto a ameaçar-me por não lhe ter prestado continência. O meu corpo a obedecer num aprumo covarde, enquanto os meus olhos verificavam em redor se haveria testemunhas para uma coronhada a coberto da escuridão.
– Um militar nunca perde o aprumo. Pegue lá na arma como deve ser!
A sentinela do batalhão de pescoço esticado a trair-me os instintos assassinos e eu a descer a G3 do ombro devagar, e a reconhecer nada menos que o Comandante de Setor. Há ocasiões em que apenas por um átimo não ganhámos a glória, ou deitámos tudo a perder.
Nesse dia à tarde o mesmo vulto na varanda do Hospital de Mueda, então, de galões bem visíveis à luz do sol:
– Meu filho perdeste uma perna mas mereces ganhar uma medalha.
– Estou-me cagando para as medalhas, não vê que agora é que perdi de vez o aprumo?
E o Primeiro Pala:
– Oh meu Coronel ele está a delirar, ele está a delirar.
O Império a arder e a imolar na sua consumição os próprios filhos. Quando um dia dele restarem apenas cinzas, os que não aprenderam nada proclamar-se-ão heróis, e os que esqueceram tudo, mártires. Haverá lugar para os que aprenderam e se recusam a esquecer?
Lutei, mas ninguém mo mereceu. Não trago comigo a memória de um único ato meritório, mas é verdade que os meus antigos heróis, descritos na História em caixa alta, não eram melhores do que eu; eu, porém, disto me posso orgulhar: ofereceram-me ali a honra imerecida e recusei.
Lisboa é um arraial de luzes na noite da minha chegada. O avião às voltas, às voltas, à espera de autorização para aterrar, e as luzes de Lisboa a acenderem-se, debruando as ruas e as avenidas com fiadas de estrelas. A ponte, uma constelação sobre o rio. As casas e os monumentos a desfilarem a meus pés com halos de luz sobre a tela negra da noite. A cabeça do Império num arremedo de homenagem, estendendo uma passadeira cintilante à minha chegada.
Não demora muito a fantasia. Mal chegamos ao Hospital Militar espera-nos a desatenção impaciente de um capitão, que delega num alferes, que delega num sargento a tarefa de ficar acordado enquanto esperamos não sei por que alta patente, que virá dar-nos uma palavra de afeto. Afeto? Esta é uma palavra não regulamentar. Demasiado feminina por assim dizer. Nas duas horas e meia em que estive sentado numa cadeira dura, de uma sala fria do Anexo do Hospital Militar à espera da alta patente e do afeto que nos serviria numa palavra apressada, durante as quais a fome que trazia da viagem se transformou numa tortura, não consegui deixar de me interrogar sobre este mistério. Como pôde um sentimento humano, mesmo dos mais básicos, ter contaminado a instituição militar?
A alta patente, de estatura atarracada, secundava afinal uma mulher de porte bem mais altivo e de uma elegância quase majestática que às duas da manhã nos fez um pequeno discurso a realçar a sua dedicação à causa do Movimento Nacional Feminino, que tinha a honra de presidir, como se via ali com a sua presença àquela hora tardia da madrugada.
São 2 e meia, e agora finalmente, no caminho entre a porta de armas do Anexo do Hospital Militar e o serviço de sargentos, caminha um estranho ser vivo. Ao todo contam-se duas cabeças, duas pernas completas e duas canadianas. Um estranho ser vivo com dois corpos ligados entre si por um varão composto por outras duas canadianas de onde se suspende uma mala. O corpo da direita é o Herculano e o da esquerda sou eu. E os sapatos de verniz negro do major de Lourenço Marques oferecidos pela esposa adúltera, a saltitarem trocados – o pé esquerdo do Herculano do lado direito e o meu direito do lado esquerdo – mas a marcarem passo certo para não nos desequilibrarmos.
O Herculano não para de rir-se.
– Para de te rir pá.
– Então tu pedes uma sandes de queijo e uma cerveja à Sopico Pinto? És uma anedota!
– Ela não disse que se precisássemos de alguma coisa…?
– Mas uma sandes? Ainda se lhe pedisses para alguém nos trazer as malas…
– Uma mala, que por acaso é tua.
– Mas o sargento é que não gostou da ideia. O pobre, que tinha lá a sandes para ele…
Mais um ataque de riso do Herculano. Não lhe dou troco.
Nada por aqui se parece com uma enfermaria. Sentamo-nos no meio do caminho para descansar um pouco.
– Trazes uma bigorna nesta mala?
– Este gajo é uma anedota! Comeu a sandes ao pobre do sargento.
E desata a rir novamente.
Depois de transpormos acrobaticamente o enorme obstáculo constituído por apenas três degraus da entrada do pré-fabricado que faz as vezes de enfermaria de sargentos, entramos num hall lúgubre de onde irradiam dois corredores. Só então descobrimos que não há ninguém para nos receber, e não temos como saber que cama, nem tampouco que quarto, nos foram destinados.
Enquanto o Herculano vai dizendo a frase "Este gajo é uma anedota" seguida de uma gargalhada como se fosse um refrão, eu dou por mim a pensar que me estou a afastar definitivamente da guerra. Um bloqueio mental, um sentimento de negação que me afasta demasiadamente da Guerra Colonial para poder escrever sobre ela. Olho impotente para o bloco de cartas, onde costumo rabiscar as minhas notas.
– Porque estás tu a olhar para uma folha em branco?
Deixo o Herculano de boca aberta sentado no sofá do hall e vou abrindo as portas dos quartos, uma a uma, até encontrar, a primeira cama vaga para dormir.
Acordo na manhã seguinte dentro de um caixão. Quem terá sido o imbecil que concebeu o interior dos quartos dos furriéis feridos em combate naquela forma?
Acordei com um safanão e uma cara indignada com ar de ter perdido algo mais do que a noite:
– Dormiste na minha cama.
Esta foi a primeira de muitas noites no purgatório, o Anexo, um lugar a meio caminho entre dois infernos: o desterro da guerra numa terra distante e a guerra contra o desterro na minha própria terra.
O meu país tem medo dos filhos que sacrificou.
O meu país está doente.
E lá fora, a cidade acordando serena. Lisboa, como um doente terminal ignorando a doença. Lisboa nunca acorda completamente, estremunhada de ignorância.
E protege-se de nós.


1 comentário:

António P. Almeida disse...

"O meu país tem medo dos filhos que sacrificou", dizes tu, mas permite-me, que este país, que tão ditosos dirigentes tem tido, antes, tem vergonha de quantos foram sacrificados naquelas paragens africanas e, no caso, no Planalto dos Macondes. Mais um texto como só tu,recorrendo a uma escrita poética, permite-me, sabes traduzir quanto viveram muitos de nós. Um abraço do António Almeida