– Mantenham-se em formação com as armas em posição de fogo até novas ordens.
E eu a pensar “Este gajo está com medo de quê, isto não é só para proteger uns pretos a partir pedra? Queres ver que logo no primeiro dia vamos ter porrada.”
Não sei porque me veio isto agora à ideia aqui no meio do areal da Costa Nova, tantos anos depois. A Zulmira lá em cima na barraca e eu a passear junto ao mar.
Porque me incomoda o mar tão calmo? Porque me dá a ideia que algo se prepara em segredo por detrás desta calma toda? As pessoas ao longe, onde o mar é mais fundo a nadarem numa algazarra de festa mas eu a sentir a calma das águas e a pensar “Aqui há coisa”.
O furriel inquieto a olhar para os pretos a partir pedra no fundo da pedreira e eu a pensar “Aqui há coisa, então nós viemos só para proteger estes gajos e o furriel tão nervoso?”
Daí a nada o furriel a dizer entre dentes “Filho da puta”, e eu olhei para baixo e perguntei:
– Ó furriel, há azar?
Mas ele não tirava os olhos dos pretos a partirem pedra, e nisto, lá em baixo, um branco com uma vara a bater num preto, e o furriel:
– Filho da puta!
Porque não me saem estas coisas da cabeça? Ao tempo que isto lá vai. Eu bem caminho pela beira-mar fora a ver se se me limpam as ideias – agora as pessoas como moscas ao longe, e o mar tão calmo a fazer-me impressão. Mas estas coisas vão e voltam de novo como a maré que traz uma espuma meio amarelada até aos meus pés e depois a leva de volta. Um metro para cá, um metro para lá, numa calma que me irrita. Na minha cabeça, uma porta a bater, e a minha mãe:
– Ó Zé deixaste a porta aberta!
E eu a voltar para trás com o saco de batatas às costas para fechar a porta da adega, tão calmo como o mar hoje. A voz da minha mãe, mesmo zangada nunca me irritava.
Na minha cabeça a porta da adega a bater de novo, mas agora em vez da voz da minha mãe, o furriel:
– Filho da puta!
Tudo misturado, tudo ao mesmo tempo a fazer-me confusão. Achei que se viesse caminhar onde a areia é dura, não a seca onde enterramos os pés, nem a que está debaixo de água, onde nos afundamos, mas aquela faixa de areia entre o mar e a praia, aquele meio-termo onde podemos caminhar como se fosse em terra firme, enfim, achei que me acalmasse. Mas não, só imagino toda a raiva que pode estar por detrás de um mar calmo, a tempestade que se prepara algures para além do céu azul, e esta areia molhada, nem seca nem submersa; esta indecisão, esta incerteza aumenta a minha inquietação.
Lá no fundo da pedreira os pretos a partirem pedra. O furriel a desconfiar de alguma coisa. O capataz a bater no preto com a vara. O furriel a dizer “Filho da puta”. A porta da adega a bater. A minha mãe: “Ó Zé deixaste a porta aberta”. Parece que as coisas me vêm à ideia assim como estilhaços de alguma coisa que se partiu, e que se perderam as partes mais importantes.
Quando tento lembrar-me de alguma coisa é assim, só estilhaços. Quanta coisa se perde, meu Deus, na vida de um homem, para sempre, para sempre.
De repente o furriel a pegar no rádio e a gritar:
– O que é que eu faço ao gajo? Nada? Nada? Então no plano da operação eu não vinha práqui pra proteger os mineiros?
Lembro-me dos soldados deitados no chão a deixarem de olhar para a mata e a olharem para ele.
– Eu vim foi guardar escravos!
Parecia um cão raivoso aos círculos. Depois agarra na G3 como quem vai dar um tiro em alguém
e dá dois passos a descer a pedreira, mas para. Lá em baixo o capataz batia de vez em quando num preto. Nem era com muita força, era como nós fazemos aos bois, mais por hábito que outra coisa.
E o furriel envergonhado por lhe terem faltado os tomates para fazer ali uma desgraceira, e depois a passar por mim a dizer palavrões, com os olhos muito brilhantes. Se tivesse ido, se tivesse descido, se o outro tivesse resistido e se o furriel o tivesse insultado, tudo poderia ter acontecido, porque o capataz trazia uma pistola. Hoje, ao menos, teria uma história interessante para recordar, assim dá-me a impressão que pouca coisa aconteceu.
De tudo o que vivi, o que consigo recordar? Alguns estilhaços. Cada dia com vinte e quatro horas, em cada hora tanta coisa a acontecer à nossa volta. Rostos, vozes, sentimentos, afetos e ódios. Tantas palavras ditas, tantos gestos feitos, tantas coisas importantes que esquecemos.
Se nos lembrássemos de tudo seria melhor? Não sei, sinto o som de uma porta a bater e estas coisas vêem-me à ideia, aos bocados, tudo misturado, mas tenho a impressão que as partes mais importantes não me sobem à ideia, ficam afundadas no esquecimento para me pouparem. Se nos lembrássemos de tudo seriamos escravos do passado. A memória é uma doença mental, se não houvesse esquecimento enlouquecíamos todos.
Mas o que terá dito o furriel quando passou por mim com os olhos a brilharem de raiva? Sei que disse alguma coisa mas não me lembro. Dizia palavrões entre dentes, isso eu sei, mas ele disse qualquer coisa que me intrigou na altura e agora não me vem à ideia. Ficou esquecido e esquecido ficará para sempre, mas era uma coisa importante para eu agora entender porque sinto medo e raiva ao ver o mar tão calmo.
Eu ponho-me a aparafusar estas coisas e acabo por chegar à conclusão que afinal éramos todos escravos. Levaram-nos à força ou ao engano para lá, e se refilássemos muito também estávamos feitos ao bife. Éramos escravos a guardar escravos. Se calhar é mesmo assim que as coisas funcionam. Os homens livres não guardam escravos. Se aceitamos que um de nós seja escravo, somos todos escravos. Ah… engraçado, se não me engano foi algo assim que o furriel disse. Faltou-lhe a coragem para enfrentar o capataz e pôs-se ali a filosofar.
Lá em baixo na pedreira o capataz batia nos pretos com muita calma, quase com afeto, como nós fazemos com o gado. E a raiva do furriel a destoar daquela calma toda.
A mesma raiva que eu sinto ao ver o mar calmo. As pessoas a mergulharem nas ondas vezes sem conta, a chapinharem na água, a recuarem quando as ondas se aproximam, a avançarem para a água quando ela recua e a recuarem de novo quando ela avança, uma coisa tão inocente, tão infantil que quase me traz as lágrimas aos olhos, e de repente a voz do furriel:
– Filho da puta!
Porque me vêm estas coisas à ideia como uma porta a bater?
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