28.10.12

Incongruências


Lastro
Eras tu e eu na sala vazia. O gira-discos no chão. Às vezes fumávamos um cigarro.
Conversávamos com os olhos, com as mãos. As palavras guardávamo-las para quando não tivéssemos nada que dizer.
Um espaço vazio tem essa vantagem: podemos imaginar muita coisa para lá pôr.
É um momento de esperança, aquele em que se está só, a dois, numa sala vazia, falando sem palavras, e ouvindo o eco da nossa conversa no próprio corpo, imaginando o que a vida nos trará.
Depois enchemos a sala de coisas, os quartos, a casa toda. E as coisas que arranjámos já não cabem na nossa casa, nas nossas vidas.
E agora somos um cargueiro navegando pela vida fora sem espaço para pormos o gira-discos no chão e sem espaço para que o silêncio da nossa conversa faça eco numa sala vazia e se reflita pelas paredes até o sentirmos no corpo.
Devíamos viver ao contrário. Devíamos ir alijando todo o lastro das nossas vidas com o tempo, até ficarmos sem nada.
A não ser nós os dois numa sala vazia.

Fidelidades
Espero que tudo quanto eu digo se venha a comprovar falso. Olho à minha volta e tenho poucas dúvidas da tragédia a que nos conduzem, tal como tu. Mas ainda assim não estamos de acordo, porque tu desejas ardentemente ter razão por fidelidade aos teus princípios e eu desejo estar redondamente enganado por fidelidade às pessoas.

Dignidade
Que pensaste quando ajeitaste a corda como se fosse uma gravata? Sei que a ajeitaste, porque eras meticuloso. Sei que passaste a mão pelo cabelo como fazias sempre que te preparavas para algo importante, como se não quisesses ser recordado em desalinho.
Tinhas uma dignidade que só vi em alguns homens nesta vida, muito poucos; tão poucos, que pensando bem, ninguém a tinha como tu.
Momentos antes queimaste uns papéis, depois regaste o canteiro da salsa; então, foste para a adega, e ninguém mais te viu.
Apenas te ouviram tossir violentamente.

Indiferença
Uma criança de ventre inchado e moscas na boca disputa algumas migalhas com os pássaros. A pele do rosto devolve a luz avermelhada de África num tom mais escuro e macilento. Ao longe distinguem-se umas árvores raquíticas e viaturas militares. Algumas passam perto e lançam nuvens de poeira para cima da criança. Não se ouve se chora ou se soluça, porque o barulho das vozes no café abafa o som da televisão.
Alguém pede um fino, alguém pergunta se falta muito para começar o jogo.
Alguém ri.

Ilusão
Guardo nítida a forma da tua silhueta frente ao mar. Uma ligeira dormência que sempre sucede a um esforço demorado guardou essa imagem no acervo dos meus sonhos.
O meu cansaço teve hoje outra origem, mas ao olhar a janela do quarto de hotel que dá para a aridez da cidade, é o mar que vejo e a tua silhueta que percebo nítida, e a certeza de te ter amado toda a noite.

Luto
Quem eras tu, com quem vivi dia apos dia e noite após noite, com quem caminhei, com quem morria a cada passo que dava, a cada dia que passava?
O companheiro, o amigo de sangue, o camarada, o irmão no medo e na coragem... Quem eras tu? Que rosto era o teu que o tempo apagou?
Tu que, ignorante como eu, acreditavas que a guerra era uma solução para salvar vidas, e que os mortos eram um erro inevitável, um erro calculado?
Tu que não foste contemplado pela solução. Tu, de quem esqueci já o rosto e a voz, porque fazias parte do inevitável erro.
Quem eras tu? Serias apenas a parte de mim que morreu também?
Porque tu, tu mesmo, ter-te-ei eu esquecido completamente, para permitir que a minha sanidade sobrevivesse?
E a dor residual que me ficou, será apenas autocomiseração?
Será apenas a parte sobreviva de mim fazendo o luto pela que lá morreu?

Breivik
O sorriso do condenado prova a insanidade da pena. Uma pena devia ter sempre a medida justa do sofrimento em juízo. Anders Breivik deveria ter sido condenado à inviabilização do prazer.

Conflito
Tu olhas-me com desdém. Tens razão, são patéticas as minhas palavras. Só não o disseste assim porque te exprimiste mal e saiu-te uma deselegância.
Mas esta é a minha maneira de dizer que há conflitos que nunca terão solução. Podemos mudar de opinião sobre as coisas que fizemos, mas não poderemos mudar o que fizemos.
Porém, tu preferes a coerência à verdade, e adaptas o passado para que o teu presente faça sentido. Eu prefiro a verdade à coerência e jamais resolverei este conflito de valores.
Combatemos na mesma guerra. Tu, segundo dizes, já então consciente da injustiça; por isso combateste porque não tiveste coragem de desertar. Eu, apenas porque acreditei que era meu dever.
A tua forçada coerência faz de ti culpado. Eu, pelo menos, tenho a desculpa da ignorância.

Mentiras
Gostava de olhar-te sem tu me veres, quando caminhavas ao meu encontro. Ver-te caminhar ansiosa, quase ofegante assim, era o meu segredo sobre ti.
Depois encontrávamo-nos, e tu fingias uma calma quase displicente, e eu, uma surpresa ingénua.
Hoje, que conheço os teus passos a subir as escadas, e tu o modo como abro a porta da rua, temo-nos por adquiridos e já não precisamos de mentir.
Mas essas mentiras fazem-me falta.

Exceção
Camarada, eu sei que se a regra está errada, a exceção está certa; pelo menos socialmente. Mas se os famélicos e os desvalidos nos veem do lado dos privilegiados; e, vítimas que são da regra, não nos perdoarão por fazermos parte da exceção.
Dizes-me que um sistema justo nivela por cima, como se a democracia fosse um sistema a tender para a excelência. A democracia tende forçosamente para a mediocridade, e os limites dos recursos disponíveis exigem a nivelação ponderada pela mediania. Assim, os sistemas sustentados num crescimento obrigatório, como o capitalismo, estão condenados ao colapso mais cedo ou mais tarde; mas até lá, vão deixando para trás multidões e multidões de excluídos, os quais, acabam inevitavelmente por constituir a regra; e toda a exceção aqui é odiosa.
Por isso, cada coisa que obtivermos fugindo à regra será considerada um privilégio, mesmo que seja um nosso direito inquestionável.
A metáfora que me ocorre é a do inalienável direito à vida que os guardas prisionais judeus gozavam a título excepcional; mas o que pensariam os outros judeus a caminho dos fornos crematórios?

Desejo
Queria que me desejasses sem ser por amor. Desejar por amor é como casar por dinheiro.
Queria que me desejasses por desejo.
Algo animal. Algo magnético.
Uma tentação fatal entre opostos.
Eu o pináculo de catedral e tu a nuvem.
Numa noite de tempestade.

Versão audio para deficientes visuais: ouça aqui

Sem comentários: