Lastro
Eras tu e eu na sala vazia. O gira-discos no chão. Às vezes
fumávamos um cigarro.
Conversávamos com os olhos, com as mãos. As palavras
guardávamo-las para quando não tivéssemos nada que dizer.
Um espaço vazio tem essa vantagem: podemos imaginar muita
coisa para lá pôr.
É um momento de esperança, aquele em que se está só, a dois,
numa sala vazia, falando sem palavras, e ouvindo o eco da nossa conversa no
próprio corpo, imaginando o que a vida nos trará.
Depois enchemos a sala de coisas, os quartos, a casa toda. E
as coisas que arranjámos já não cabem na nossa casa, nas nossas vidas.
E agora somos um cargueiro navegando pela vida fora sem
espaço para pormos o gira-discos no chão e sem espaço para que o silêncio da
nossa conversa faça eco numa sala vazia e se reflita pelas paredes até o
sentirmos no corpo.
Devíamos viver ao contrário. Devíamos ir alijando todo o
lastro das nossas vidas com o tempo, até ficarmos sem nada.
A não ser nós os dois numa sala vazia.
Fidelidades
Espero que tudo quanto eu digo se venha a comprovar falso.
Olho à minha volta e tenho poucas dúvidas da tragédia a que nos conduzem, tal
como tu. Mas ainda assim não estamos de acordo, porque tu desejas ardentemente
ter razão por fidelidade aos teus princípios e eu desejo estar redondamente
enganado por fidelidade às pessoas.
Dignidade
Que pensaste quando ajeitaste a corda como se fosse uma
gravata? Sei que a ajeitaste, porque eras meticuloso. Sei que passaste a mão
pelo cabelo como fazias sempre que te preparavas para algo importante, como se
não quisesses ser recordado em desalinho.
Tinhas uma dignidade que só vi em alguns homens nesta vida,
muito poucos; tão poucos, que pensando bem, ninguém a tinha como tu.
Momentos antes queimaste uns papéis, depois regaste o canteiro
da salsa; então, foste para a adega, e ninguém mais te viu.
Apenas te ouviram tossir violentamente.
Indiferença
Uma criança de ventre inchado e moscas na boca disputa algumas
migalhas com os pássaros. A pele do rosto devolve a luz avermelhada de África
num tom mais escuro e macilento. Ao longe distinguem-se umas árvores raquíticas
e viaturas militares. Algumas passam perto e lançam nuvens de poeira para cima
da criança. Não se ouve se chora ou se soluça, porque o barulho das vozes no
café abafa o som da televisão.
Alguém ri.
Ilusão
Guardo nítida a forma da tua silhueta frente ao mar. Uma
ligeira dormência que sempre sucede a um esforço demorado guardou essa imagem
no acervo dos meus sonhos.
O meu cansaço teve hoje outra origem, mas ao olhar a janela
do quarto de hotel que dá para a aridez da cidade, é o mar que vejo e a tua
silhueta que percebo nítida, e a certeza de te ter amado toda a noite.
Luto
Quem eras tu, com quem vivi dia apos dia e noite após noite,
com quem caminhei, com quem morria a cada passo que dava, a cada dia que
passava?
O companheiro, o amigo de sangue, o camarada, o irmão no
medo e na coragem... Quem eras tu? Que rosto era o teu que o tempo apagou?
Tu que, ignorante como eu, acreditavas que a guerra era uma
solução para salvar vidas, e que os mortos eram um erro inevitável, um erro
calculado?
Tu que não foste contemplado pela solução. Tu, de quem
esqueci já o rosto e a voz, porque fazias parte do inevitável erro.
Quem eras tu? Serias apenas a parte de mim que morreu
também?
Porque tu, tu mesmo, ter-te-ei eu esquecido completamente,
para permitir que a minha sanidade sobrevivesse?
E a dor residual que me ficou, será apenas autocomiseração?
Será apenas a parte sobreviva de mim fazendo o luto pela que
lá morreu?
Breivik
O sorriso do condenado prova a insanidade da pena. Uma pena
devia ter sempre a medida justa do sofrimento em juízo. Anders Breivik deveria
ter sido condenado à inviabilização do prazer.
Conflito
Tu olhas-me com desdém. Tens razão, são patéticas as minhas
palavras. Só não o disseste assim porque te exprimiste mal e saiu-te uma
deselegância.
Mas esta é a minha maneira de dizer que há conflitos que nunca
terão solução. Podemos mudar de opinião sobre as coisas que fizemos, mas não
poderemos mudar o que fizemos.
Porém, tu preferes a coerência à verdade, e adaptas o
passado para que o teu presente faça sentido. Eu prefiro a verdade à coerência
e jamais resolverei este conflito de valores.
Combatemos na mesma guerra. Tu, segundo dizes, já então
consciente da injustiça; por isso combateste porque não tiveste coragem de
desertar. Eu, apenas porque acreditei que era meu dever.
A tua forçada coerência faz de ti culpado. Eu, pelo menos,
tenho a desculpa da ignorância.
Mentiras
Gostava de olhar-te sem tu me veres, quando caminhavas ao
meu encontro. Ver-te caminhar ansiosa, quase ofegante assim, era o meu segredo
sobre ti.
Depois encontrávamo-nos, e tu fingias uma calma quase
displicente, e eu, uma surpresa ingénua.
Hoje, que conheço os teus passos a subir as escadas, e tu o
modo como abro a porta da rua, temo-nos por adquiridos e já não precisamos de
mentir.
Mas essas mentiras fazem-me falta.
Exceção
Camarada, eu sei que se a regra está errada, a exceção está
certa; pelo menos socialmente. Mas se os famélicos e os desvalidos nos veem do
lado dos privilegiados; e, vítimas que são da regra, não nos perdoarão por
fazermos parte da exceção.
Dizes-me que um sistema justo nivela por cima, como se a
democracia fosse um sistema a tender para a excelência. A democracia tende
forçosamente para a mediocridade, e os limites dos recursos disponíveis exigem
a nivelação ponderada pela mediania. Assim, os sistemas sustentados num
crescimento obrigatório, como o capitalismo, estão condenados ao colapso mais
cedo ou mais tarde; mas até lá, vão deixando para trás multidões e multidões de
excluídos, os quais, acabam inevitavelmente por constituir a regra; e toda a
exceção aqui é odiosa.
Por isso, cada coisa que obtivermos fugindo à regra será
considerada um privilégio, mesmo que seja um nosso direito inquestionável.
A metáfora que me ocorre é a do inalienável direito à vida
que os guardas prisionais judeus gozavam a título excepcional; mas o que
pensariam os outros judeus a caminho dos fornos crematórios?
Desejo
Queria que me desejasses sem ser por amor. Desejar por amor
é como casar por dinheiro.
Queria que me desejasses por desejo.
Algo animal. Algo magnético.
Uma tentação fatal entre opostos.
Eu o pináculo de catedral e tu a nuvem.
Numa noite de tempestade.
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