(Escrito segundo o Novo Acordo Ortográfico)
Cabo da Roca de Tânia Barreto
Mar
Quando ouvia o mar, não ouvia o mar, ouvia o silêncio da tua voz. Agora que tenho a tua voz, já ouço o mar quando ouço o mar.
A tua voz devolveu-me a realidade.
Futebol
Ouvi dizer não sei onde que, não sei em que companhia, não sei em que terra da Guiné, viravam os altifalantes para o mato para que os turras ouvissem o relato de futebol. E durante 90 minutos, de ambos os lados do arame-farpado, só havia benfiquistas ferrenhos e sportinguistas fanáticos.
Mas assim que acabava o jogo, a mais primária estupidez humana regressava de novo.
Vergonha
Um homem morreu e a arma na minha mão ainda quente.
Não fora eu tão lesto e quem tinha morrido era eu.
Havia uma Lei, um Dever, e nós cumprimos o nosso lado da História.
Ou então há um criminoso dentro de nós há espera de uma guerra para tornar num ato heroico a mais miserável cobardia.
Um criminoso, ou então um instinto ancestral adormecido na alma dos homens, ou então…
– Meu Deus, o que nós inventamos por vergonha dos nossos filhos!
Rádio
O alferes tirou todos os pertences ao prisioneiro. Nada valia nada, que os guerrilheiros de pouco vivem. Só um rádio a pilhas mereceu a categoria de despojo de guerra e o alferes levou-o consigo.
Agora, na memória do alferes, o rádio a pilhas é um guerrilheiro humilde que arriscou a vida que lhe davam, para ter direito a ter a vida que queria. E, pelo rádio, o guerrilheiro olha-o a lembrá-lo que os motivos das guerras duram incomensuravelmente menos que a memória da crueldade.
Como queria devolver o rádio para que todos os despojos de guerra fossem com ele! Para que ao devolvê-lo o Tempo rebobinasse a memória.
Mas a inocência é como a virgindade, não se recupera mais.
Cego
Uma cidade de cheiros e sons. Onde a luz falta, o tato sente as superfícies e o ouvido a distância.
De que cor é a alegria? E que sombra fará o ciúme sobre o peito? Há mais coisas que o homem não vê do que as que apenas descobrimos com os olhos.
A vibração do ar anuncia o lençol no estendal e o vento lateral avisa o cruzamento.
O som dos passos devolvido pela parede, diferente do som devolvido pela sebe do jardim, diferente do som perdido no ermo.
Conhecer a natureza do chão pelo ranger da areia, a natureza da amizade pela modelação da voz. Sentir a essência do mundo em vez da aparência.
Às vezes dá que pensar se perder isto vale um par de olhos.
Mas quando a coragem falta; a mim, basta-me levantar as pálpebras e refugiar-me na luz.
ADFA
O quadrado vermelho é o mais democrático dos equiláteros. Dentro dele, o quadrado branco transfigura-se em losango, erguendo-se corajoso no único pé para superar a sua condição de objeto plano, e o quadrado negro, neste incluso como uma íris, fita o Infinito.
Fita-O, e nas trevas de que é feito acende-se um círculo dourado de esperança, que sublima a sua inconformada quadratura.
E a luz que nele se acende somos todos nós.
Eu
Nos fins de semana de agosto, Coimbra ganha espaço para a solidão, pois há mais ruas e menos gente; espaços debaixo das árvores como um tempo à espera de ser vivido; vielas com cheiros que ganham o protagonismo que o bulício perdeu; portas fechadas como pessoas de costas voltadas; janelas com vidraças veladas que guardam a falsa intimidade dos cafés abandonados, onde as cadeiras assustadas subiram para cima das mesas; parques tornados pistas de dança para as folhas caídas ao sabor do vento; o Mondego segurando alguns barcos tristes na sua barriga de água, e que não parece disposto a levá-los para lado nenhum; semáforos que mandam parar de um lado e avançar do outro, e vice-versa, numa teimosia inútil de máquina avariada; um vazio de caixa abandonada; uma inospitalidade de cidade fantasma, onde se passeia a ausência das pessoas e eu.
Ninfa
Passas por mim deixando uma alteração na atmosfera.
Passas e nada mudaria se não fosse eu animal e tu deusa.
Imagino o ar abrindo, molécula a molécula, para te envolver, e depois algo teu, íntimo e exclusivo ficando suspenso e viajando na minha direção, como um perfume nos cabelos da brisa.
Algo hormonal e ínfimo e invisível e imponderável, como um desejo secreto e inconfessável, que se soltasse de ti e viesse desaguar no arneiro do meu corpo.
E eu, besta acuada e ávida de ceva, de venta feroz olhando a tua figura de ninfa a perder-se irremediavelmente por entre a multidão.
Tijolo
Na noite fria de África, cada um em seu tijolo, mexendo no fogo com um pau, contavam histórias que vinham de um tempo antes de todos os dias conhecidos.
Um tempo em que os homens eram todos de uma raça só.
E contavam isso como se fosse uma prece.
Mas enquanto contavam parecia possível, porque as palavras valem quase tanto como os factos se as dissermos como uma prece.
E quando já era tudo uma raça só, eu cheguei, e ninguém notou qualquer diferença.
E deram-me um tijolo para me sentar.
Aurora
Há um equilíbrio de luz e trevas no primeiro momento da aurora. Nada é tão efémero, nada tão fundamental.
Ou será que é porque perdemos a noite para ganharmos o dia, e o equilíbrio está dentro de nós?
Logo, logo, a luz criará refulgências na água e entrará pela janela dissolvendo a penumbra do quarto.
Logo, logo, olharei os teus olhos como espelhos de água sobre os prados, quando a primavera acorda em nós uma vontade selvagem de correr.
E depois, quando a manhã bruxulear já nas paredes e no teto, nós finalmente adormeceremos.
Mise-en-abîme
Pego no meu copo em frente do fogo e tenho uma certeza absoluta, mas não sei a respeito de quê.
Não me basta a alegria do riso. Não me basta ser feliz por ignorância.
Inventámos a palavra, a música e até inventámos Deus. E não contentes com isso, ainda inventámos a felicidade.
Mas a felicidade é a perfeição no tempo presente, portanto com limites; ora a perfeição com limites é um absurdo.
Eu amo a utopia, a loucura e o infinito!
Ah se ao menos estivesses aqui…
Que pena que te baste a felicidade e não venhas enlouquecer docemente comigo. Vem beber deste vinho e olhar a vertigem do fogo.
Quando olhamos o abismo não há quem nos devolva o olhar; ficamos a sós com o infinito.
Vem cair na fundura da memória, vem voar na antecipação do futuro; transpor os limites do tempo é que nos aproxima dos deuses.
Vem sofrer comigo, vem. Há mais contentamento para além da felicidade.
Ser feliz é ficarmos emparedados no presente.
Poesia
Alguém sabe quanta luz precisou a noite para ser madrugada?
Quanta vontade fez da fraqueza força?
Quanto desejo fez do apetite paixão?
Quanto vinho fez do vazio da vida a completude da alma?
Quanta música precisaram estas palavras por extenso para ganharem poesia?
Aproximarmo-nos de algo transforma-nos; ultrapassá-lo pode perder-nos. A poesia possível está na contenção; como o prazer, na sustentação do orgasmo.
O quadrado vermelho é o mais democrático dos equiláteros. Dentro dele, o quadrado branco transfigura-se em losango, erguendo-se corajoso no único pé para superar a sua condição de objeto plano, e o quadrado negro, neste incluso como uma íris, fita o Infinito.
Fita-O, e nas trevas de que é feito acende-se um círculo dourado de esperança, que sublima a sua inconformada quadratura.
E a luz que nele se acende somos todos nós.
Eu
Nos fins de semana de agosto, Coimbra ganha espaço para a solidão, pois há mais ruas e menos gente; espaços debaixo das árvores como um tempo à espera de ser vivido; vielas com cheiros que ganham o protagonismo que o bulício perdeu; portas fechadas como pessoas de costas voltadas; janelas com vidraças veladas que guardam a falsa intimidade dos cafés abandonados, onde as cadeiras assustadas subiram para cima das mesas; parques tornados pistas de dança para as folhas caídas ao sabor do vento; o Mondego segurando alguns barcos tristes na sua barriga de água, e que não parece disposto a levá-los para lado nenhum; semáforos que mandam parar de um lado e avançar do outro, e vice-versa, numa teimosia inútil de máquina avariada; um vazio de caixa abandonada; uma inospitalidade de cidade fantasma, onde se passeia a ausência das pessoas e eu.
Ninfa
Passas por mim deixando uma alteração na atmosfera.
Passas e nada mudaria se não fosse eu animal e tu deusa.
Imagino o ar abrindo, molécula a molécula, para te envolver, e depois algo teu, íntimo e exclusivo ficando suspenso e viajando na minha direção, como um perfume nos cabelos da brisa.
Algo hormonal e ínfimo e invisível e imponderável, como um desejo secreto e inconfessável, que se soltasse de ti e viesse desaguar no arneiro do meu corpo.
E eu, besta acuada e ávida de ceva, de venta feroz olhando a tua figura de ninfa a perder-se irremediavelmente por entre a multidão.
Tijolo
Na noite fria de África, cada um em seu tijolo, mexendo no fogo com um pau, contavam histórias que vinham de um tempo antes de todos os dias conhecidos.
Um tempo em que os homens eram todos de uma raça só.
E contavam isso como se fosse uma prece.
Mas enquanto contavam parecia possível, porque as palavras valem quase tanto como os factos se as dissermos como uma prece.
E quando já era tudo uma raça só, eu cheguei, e ninguém notou qualquer diferença.
E deram-me um tijolo para me sentar.
Aurora
Há um equilíbrio de luz e trevas no primeiro momento da aurora. Nada é tão efémero, nada tão fundamental.
Ou será que é porque perdemos a noite para ganharmos o dia, e o equilíbrio está dentro de nós?
Logo, logo, a luz criará refulgências na água e entrará pela janela dissolvendo a penumbra do quarto.
Logo, logo, olharei os teus olhos como espelhos de água sobre os prados, quando a primavera acorda em nós uma vontade selvagem de correr.
E depois, quando a manhã bruxulear já nas paredes e no teto, nós finalmente adormeceremos.
Mise-en-abîme
Pego no meu copo em frente do fogo e tenho uma certeza absoluta, mas não sei a respeito de quê.
Não me basta a alegria do riso. Não me basta ser feliz por ignorância.
Inventámos a palavra, a música e até inventámos Deus. E não contentes com isso, ainda inventámos a felicidade.
Mas a felicidade é a perfeição no tempo presente, portanto com limites; ora a perfeição com limites é um absurdo.
Eu amo a utopia, a loucura e o infinito!
Ah se ao menos estivesses aqui…
Que pena que te baste a felicidade e não venhas enlouquecer docemente comigo. Vem beber deste vinho e olhar a vertigem do fogo.
Quando olhamos o abismo não há quem nos devolva o olhar; ficamos a sós com o infinito.
Vem cair na fundura da memória, vem voar na antecipação do futuro; transpor os limites do tempo é que nos aproxima dos deuses.
Vem sofrer comigo, vem. Há mais contentamento para além da felicidade.
Ser feliz é ficarmos emparedados no presente.
Poesia
Alguém sabe quanta luz precisou a noite para ser madrugada?
Quanta vontade fez da fraqueza força?
Quanto desejo fez do apetite paixão?
Quanto vinho fez do vazio da vida a completude da alma?
Quanta música precisaram estas palavras por extenso para ganharem poesia?
Aproximarmo-nos de algo transforma-nos; ultrapassá-lo pode perder-nos. A poesia possível está na contenção; como o prazer, na sustentação do orgasmo.
1 comentário:
Bravo!
Bravo!
Bravo!
Felismina Costa
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