14.5.11

Volúpia dos cinco sentidos




Olfato
Não há uma palavra para o odor do teu corpo; não o teu perfume feito de modulações complexas como uma sinfonia de aldeídos florais, mas o odor do teu corpo por debaixo do teu perfume, com este vestindo-o, cobrindo-o, mas não completamente; deixando à transparência, que a nudez desse odor fresco, fresco mas não por uma questão de temperatura, antes por uma questão de viço, consiga perceber-se, embora apenas levemente, como a nudez de um corpo sob uma túnica de seda fina, ou como uma música que se ouvisse por conseguir atravessar o manto esparso, composto pela tessitura dos ruídos da rua, e viesse despertar em mim a sensação de que o dia voltou a amanhecer, e que algo de inesperado, como uma notícia há muito aguardada e já esquecida de todo, acabasse de ser anunciada, de tal modo, que despertasse em mim esta alegria infantil, e tão inocente que me apetece seguir-te por entre os cheiros dissonantes que emanam das casas e as fragrâncias harmoniosas que se soltam das flores, com o propósito de partilhar essa alegria contigo, só porque sinto que o teu odor é irmão do meu; irmão não: parceiro; algo que me falta e que sobra em ti, ou algo que em mim é convexo e é em ti côncavo, assim como duas mãos que se entrelaçam, como se dançassem, não que alguma vez tivéssemos dançado, não; mas o teu odor parece ter notas musicais que fazem balançar algo em mim, e no entanto há um silêncio no teu odor que me tira a lucidez e me atrai, como o abismo atrai o suicida, como a luz atrai o inseto; porém, agora que falo nisso, se o teu odor tem luz, é aquela luz irreal que existe nas praias frias do Norte, uma luz que não faz sombra, e onde as pessoas, ao imergirem da água, parecem só alma, mal interrompendo a bruma do mar, como o teu odor mal interrompe a torrente de cheiros da rua; mas está presente, ou antes: flui, e isso dá-me uma esperança infinita, como o caminho dá esperança ao caminheiro errante, quando, depois de cansado da lonjura, sente que chegou a hora de regressar a casa, porque nele se fará a viagem de regresso, como pelo teu odor se pode fazer a viagem para ti, sobretudo quando o banho ao fim do dia te despe do teu perfume e te deixa só com o teu odor, um odor que o banho não consegue tirar totalmente, apenas suaviza, deixando-te mais exposta aos meus sentidos; mal comparando, como se sobre ti apenas pousasse um desejo, e esse desejo é feito desse teu odor sem nome, esse odor que te aumenta a nudez, como uma praia matinal na maré-baixa, à mercê do vento, parece mais desamparada, sobretudo, se ainda emana da areia, quase impercetível, o hálito fresco do mar.

Visão
Falavas, e a bem dizer eu não te ouvia, distraído pelos movimentos dos teus lábios e pela forma como sobre a fronte uma pregazinha de pele franzia e alisava, alisava e franzia; para além de estar intrigado pela humidade que se formava junto às têmporas, a fazer adivinhar que se formariam ali, muito em breve, algumas gotículas de suor que tornariam o teu rosto ainda mais sensual; porém, eram os teus lábios que me atraiam mais; embora me surpreendesse que os teus olhos parecessem mais claros agora sob o efeito da luz, assim, entre a cor de avelã e o pistáchio, isto é, um castanho que de tão doce ameaçava esverdear um pouco, a sugerir a tua remota origem celta, ou quem sabe a querer denunciar algum invasor napoleónico que tivesse impregnado a paleta dos teus genes quando se aboletou na casa de alguma distante trisavó tua durante a guerra peninsular, porque mais nenhuma feição nórdica se vislumbra nos teus traços gerais, a não ser talvez na tua tês demasiadamente clara, já que em tudo o mais são predominantes as características trigueiras dos povos mediterrânicos; e daí, talvez nem seja tanto assim, porque há qualquer coisa de oriental no amendoado dos teus olhos que agora me encararam mais, ao mesmo tempo que o teu rosto ganhou uma iridescência de malmequer em que tivesse incidido um raio de luz do sol, talvez porque eu tenha respondido a alguma pergunta tua com um disparate qualquer, por não ter prestado atenção ao que dizias, embevecido que estou pelo encanto do teu rosto, e agora ainda mais, que se acendeu essa luz nele, ao sorrires; que persiste, dado o meu embaraço ao constatar que não prestava atenção ao que dizias, porque estava lendo cada gesto teu, todas as cambiantes da luz nos teus olhos e a mínima mudança de volume sob a pele do teu colo, onde as carótidas pulsam a um ritmo cada vez mais acelerado, levando-me a pensar que o teu ritmo cardíaco aumentou por teres adivinhado que o meu também aumentara, só de nos olharmos um ao outro; o desejo mise en abîme, como dois espelhos frente a frente, que se multiplicam reciprocamente, ao infinito.

Audição
A tua voz à beira-sonho afaga-me, e embala-me, à medida que os meus olhos adormecem, enquanto a mente ainda lúcida apenas se solta um pouco do corpo e se liberta; um tudo-nada como o riso liberta a alma, e nem a censura do bom senso segura a imaginação, de tal maneira, que parece que estou em queda livre por dentro da tua voz; como se houvesse abismos e tentações em cada palavra, que tivessem o sortilégio de redimir em vez de condenar, fosse qual fosse o credo, fosse qual fosse o deus; isto é, ouço a tua voz quando estou neste meio transe, e não há perdões impossíveis: mouros e cruzados ajoelhados numa expiação de todos os crimes mutuamente cometidos ao longo dos séculos, numa comunhão ecuménica que convocasse todo o perdão, mas tudo por dentro da tua voz, tudo a viajar no som das tuas palavras, que chega até bem dentro de mim; não apenas como ondas acústicas, mas como uma vibração da alma, em todas as frequências possíveis, desde a ternura até ao gozo, desde o júbilo até à mágoa, mas tudo de uma forma serena, mais serena ainda que uma asa de ave na noite calma, riscando a pele virgem de um lago sob o rosto complacente da lua, e tudo na tua voz; tal como o apelo do mar, misterioso e antiquíssimo, desde os nossos egrégios avós, aumentando o conceito do longe e da aventura e a ânsia louca de chegar, de chegar seja onde for, só pelo prazer de chegar a algum lado, e tudo na tua voz; na tua voz como numa viagem, onde imagino navegantes seguindo as estrelas, pela noite do desconhecido; na tua voz como numa partida onde eu, perdido numa praia deserta, ouvisse o orgasmo do mar e ardesse com o ciúme de ver partir as caravelas, enquanto ficasse para trás, longe da ação e da aventura, triste e só, masturbando-me ao luar; e tudo, tudo, na tua voz.

Tato
Conheço-te melhor desde o dia em que o teu braço roçou no meu, nem sei se roçou, mas imaginei que sim, pelo menos eu senti uma pequena corrente elétrica subindo até algures na coluna cervical; sim, logo abaixo da nuca, onde ainda hoje sinto prazer quando me tocas, embora depois percorra todo o corpo, mas é dali que emana, especialmente, se não estou a contar que uma mão tua me procure imitando uma gaivota pousando numa arriba como prenúncio de mar bravo, quando ainda a água está calma e os pensamentos distraídos não passam de albatrozes sentados no vento, e é aí que subitamente tudo se agita, porque as tempestades começam quando essa primeira gaivota poisa em terra, quando ainda ninguém espera que o dia se embrulhe todo como um turbilhão de corpos em luta, tal e qual como acaba por acontecer connosco algum tempo depois de nos tocarmos, e depois que um pequeno choque elétrico liga não sei que interruptor logo aqui abaixo da nuca, o que é estranho, porque quando sou eu a procurar a superfície da tua pele, tudo parece tão lúcido em mim, tão lúcido que cada milímetro quadrado é um continente inexplorado, tão lúcido que sinto os teus poros na polpa dos dedos ao percorrer os vãos e desvãos do teu corpo, mal te tocando, não te tocando mesmo, apenas cada mão minha imitando uma ave de rapina em voo rasante sobre a pradaria, não sentindo tu nada, senão por um movimento no ar, senão por uma diferença de temperatura; nem tanto: apenas por uma troca subtil de eletrões entre a minha pele e a tua; ou menos ainda: só pela atração universal da matéria, tão impercetível que nem dá para acreditar que arquitete o Universo todo, e a nós faça com que, perdidos no vácuo cósmico deste quarto, sintamos a gravidade da Terra em cada dedo; de tal forma, que todos os frutos já maduros do teu corpo anseiem por ser colhidos, e a minha fome de tocá-los, não ainda de colhe-los ou de comê-los, mas apenas de tocá-los, crie este magnetismo entre fome e fruto, o que me convence que nós somos um todo, apenas aguardado a conjunção dos nossos corpos, enquanto desde o interior de cada um de nós cresce esta vontade incontrolável de contacto, em mim de dentro para fora, e em ti de fora para dentro, como um vórtice que ora gira para um lado ora para o outro, conforme se encontre de um ou de outro lado do equador, e se alimenta a si próprio até todas as forças eólicas se equilibrarem, mas antes há a tempestade, antes há a agitação, e ainda antes de tudo isso há o toque quase inadvertido do teu braço no meu que desperta em mim a certeza de te conhecer desde sempre, e aciona a ignição de todo o desejo.

Paladar
Acordei na tua boca como fruto intumescido e ardente.
Eu indefeso, tu felina devorando a minha carne eminente.
Tanto prazer até dói.
A tua alma girou dentro do teu corpo como se a Terra invertesse a polaridade.
Neste beijo excêntrico, o que em ti é sul, é norte em mim, cumprindo a lei da atração dos contrários.
Flor carnívora, que esmagas em mim a corola rubra do teu corpo, a que me sabes tu?
Ostra ou açafrão?
E a que te saibo eu?
Jasmim ou maçapão?
Tu em equilíbrios de fogo e gelo. Eu tentando suster a espiral de uma galáxia.
De um lado desfaleces desfolhada, do outro espirro desfeito.
Acabamos, tu pétala a pétala sob o meu rosto, eu gota a gota no teu peito.

(Segundo a nova ortografia)