15.1.11

Romance imperfeito



A colina relvada descia até ao lago artificial a convidar os veraneantes mais para contemplações do que para intimidades.
A meio da colina um homem parado, olhando uma mulher que sai de um automóvel familiar topo de gama, estacionado à entrada do parque, e que depois se aproxima. Ele firme aguardando por ela, ela débil, aproximando-se dele a custo. Um vulto por detrás dos vidros fumados do carro.
A mulher para à distância de um metro. Não se tocam. Não sentem o convite da colina para contemplar o lago, não vêm as sombras a realçarem as irregularidades do chão, não vêm os veraneantes que tendem a descer para junto da água.
Uma mulher que vem encontrar-se com um homem e fica parada a olhá-lo, numa idade em que as subtilezas dos afetos não dispensam o calor dos corpos.
Um homem e uma mulher amando-se através do olhar. Acabando de se encontrar mas olhando-se como se fosse uma despedida, e quisessem guardar uma última imagem dos seus rostos antes de partirem.
Não ouvem os risos despreocupados das crianças, os chamamentos disciplinadores dos pais. Não ouvem a música que vem do restaurante a meio da colina.
Só os amantes furtivos ficam surdos no meio do ruído. Só os amantes clandestinos se julgam a sós no meio da multidão.
As pessoas passam por eles sem os verem. Um cachorro fareja as calças do homem. Uma borboleta quase pousa no lenço da mulher. Há ali, no meio do bulício, um mundo recatado e íntimo com apenas dois habitantes que se olham mutuamente, como se o tempo fosse um bem tão raro que um só momento sem se contemplarem seria uma perda incalculável.
Que fatalidade irremediável se avizinha? Que contagem decrescente lhes faz sentir este momento como derradeiro?
Um homem de cabelo ralo e uma mulher de lenço a cobrir a cabeça como um turbante, mais a encobrir do que a proteger, olham-se como quem perdeu a maior parte das suas vidas e quer aproveitar os derradeiros minutos.
Tiro a tampa da objetiva e preparo-me para fotografá-los, mas sinto-me como um caçador que exulta perante a visão da peça de caça, mas que perde a coragem quando se prepara para a abater; e recolho a máquina com a consciência pesada de quem esconde a arma de um crime.
Erguem as mãos lentamente e tocam-se, palmas com palmas, como fazem os prisioneiros com os seus entes queridos através de um vidro. Que relação proibida, que amor impossível separa o homem e a mulher a meio da colina, que parecem ter-se encontrado no fim da história, quando já não há tempo para a paixão e lhes resta apenas um olhar de despedida? Com quem desperdiçaram a vida que agora parecem querer segurar em desespero entre as palmas das suas mãos?
É tarde… será tarde? Será que não há tempo para se encontrarem a sós? Será que o eterno desencontro da vida não lhes deu a provar um momento de felicidade e só lhes permite a despedida sem o conforto da partilha, sem a cumplicidade na aventura dos afetos e dos prazeres?
Afastam as mãos. Ela recua alguns passos, sempre olhando para ele, depois vira-se como se quisesse fugir, como se tivesse acabado o seu tempo, e se fosse entregar ao carrasco. A mão tapando a boca a abafar um grito. As pernas inseguras a levarem-na dali. Sente-se daqui a dor que leva no peito.
Ele parado a vê-la desaparecer por entre os veraneantes. Ainda surdo ao bulício, ainda cego a toda a vivacidade em redor. Que crueldade pode separar duas pessoas assim? Que misericórdia permitiu que ao menos se tenham despedido? Que vulto escolheu a velatura dos vidros fumados do carro para ficar aguardando, excluindo-se da história num ato de extrema dignidade?
O homem desce agora a colina até à beira do lago, olhando o chão, como um general que tivesse assistido impotente à chacina de todos seus soldados. Por momentos imaginei que num impulso tresloucado puxasse de uma arma e pusesse fim à vida ali mesmo.
Desapareceu também no meio das pessoas, e a colina ficou imediatamente transformada num deserto onde os veraneantes não conseguiam preencher a solidão. Uma enorme ausência tomou conta da tarde, e a vida naquela colina transformou-se numa história com figurantes anónimos mas sem protagonistas.
As vozes e a música amorfas, desumanas; as pessoas, todas elas estranhas; um mundo hostil sem a familiaridade de um olhar amigo. A colina, como uma vertigem, criando tentações de suicídio no lago artificial.
Mas lentamente os ruídos regressam e preenchem o silêncio. A pouco e pouco as vozes das crianças animam a tarde. A música vinda do restaurante. As sombras a espreguiçarem-se pela colina abaixo convidando de novo os veraneantes a acercarem-se da frescura do lago. A despreocupação da vida ao ar livre a substituir os dramas íntimos. A fazê-los esquecer. Que homem e que mulher estiveram aqui há pouco, onde agora não resta um vestígio? Dois entre mil que se encontraram anonimamente no meio da multidão, e que viveram alguns minutos ínfimos e efémeros comparados com o resto das suas vidas. Será que não foi apenas a melancolia de uma tarde de fim de verão, feita das sombras sobre a relva e de um lago ao fundo, que me levou a fantasiar? Que insignificância foi essa que alterou a minha tarde de domingo? Que memória perdida, vinda não sei de que vivências do passado ou temores do futuro, transformou um encontro casual de duas pessoas num drama?
Será que aconteceu?

1 comentário:

António Almeida disse...

... sim, Manuel Bastos, nunca regressamos, diremos todos nós, também, de Àfrica e da guerra. O teu, mais um, realista texto, levou-me, perdoa-me a boleia, até às Bananeiras onde, por estes dias, mais precisamente no dia 1º do ano de 1974 disse adeus, sem os conhecer e ver sequer, a 4 rapazes da CART de Nancatary, que nos vinham abastecer àquele buraco para onde fomos mandados na passagem desse ano. Aqui fica a minha homenagem a esses rapazes que não chegaram a ser homens, parafraseando Soeiro Pereira Gomes, acerca dos homens que nunca foram meninos.